A consultora Tabata Santos Contri, 37, foi cuidada pela mãe por mais tempo que em circunstâncias comuns, pois, além do trato natural recebido na infância, ela ainda teve o zelo e a atenção quase integral da mãe após sofrer um acidente de carro, aos 17 anos, e ficar paraplégica.
Há cinco anos, porém, inverteram-se os papéis. Eliane Ribeiro Santos, 63, mãe de Tabata, tem a doença de Alzheimer. Hoje, é a filha quem ajuda a mãe no banho, nas trocas de roupa, nos cuidados básicos.
Pesquisa de pós-doutorado realizada pela gerontologia da USP —em parceria com a Universidade Central da Flórida, nos EUA— com 716 filhos cuidadores de pais com Alzheimer indica que, na maioria quase absoluta dos casos (92%), é mesmo a filha quem se torna “a mãe da mãe”.
Liderado pela professora doutora Deusivania Falcão, o estudo concluiu que essa filha, além de cuidar da mãe, é casada, tem filhos e trabalha fora. O sentimento de afeto é apontado como crucial para que a relação se estabeleça bem e os dois lados estejam confortáveis.
“A inversão de papéis é bem difícil, principalmente no começo, quando nem a gente mesmo entende o que está acontecendo. Por outro lado, tem o sentimento de gratidão. Minha mãe sempre foi tão parceira, tão incrível, que retribuir o que ela fez por mim a vida toda é o mínimo que posso fazer”, diz Tabata, que é casada e tem um filho, Francisco, com um ano e sete meses.
A doença tem estágios leve, moderado e grave e o sintoma inicial mais comum é a dificuldade de lembrar conversas recentes, nomes ou eventos.
O ritmo de avanço varia de cada pessoa. Conforme a enfermidade progride, habilidades funcionais e cognitivas declinam, ocorrendo mudanças no comportamento.
Nos estágios mais avançados, as pessoas vão necessitar de auxílio para fazer várias tarefas do dia a dia e, consequentemente, de uma ou mais pessoas que cuidem delas. Ainda não existe cura ou tratamento que reverta o quadro gerado pela enfermidade.
Segundo Deusivania, “apesar de muitos cuidadores reclamarem de que o exercício de cuidar afeta o bem-estar físico e psicológico, ao mesmo tempo muitos alegam que essa atividade pode trazer benefícios, como reflexão sobre a vida, autoavaliação, crescimento pessoal, senso de autorrealização, prazer, gratidão”.
Mas, segundo o estudo da USP, o sentimento de obrigação filial e a reciprocidade da relação são uma das principais motivações que levam os filhos à decisão de cuidar da mãe com demência.
O Estatuto do Idoso, em seu artigo terceiro, determina que a efetivação do direito dos idosos à vida, à saúde, à alimentação, entre outros, cabe à família, ao poder público e à comunidade.
Nesse sentido, grupos de apoio, redes de auxílio e iniciativas coletivas de atenção ao cuidado do idoso com Alzheimer têm sido de grande serventia para fortalecer o ânimo e habilitar os filhos que assumem o trato de pais e mães.
A executiva Vânia Rodrigues, 58, é a principal cuidadora da mãe há quatro anos, mas conta com um staff de profissionais, tecnologia e até com vizinhos para tentar dar o melhor a Annette Cardinali, 82.
Vânia conta que sempre viveu com a mãe e, por isso, acha natural que seja ela, a caçula, e não os irmãos homens, quem assuma a maioria das responsabilidades.
“Não deixo de fazer nada por causa da minha mãe, mas diminuí o ritmo da vida social. Compenso minha ausência com um apartamento cheio de câmeras para monitorá-la e que consulto sempre. Mas também é importante contar com o apoio de vizinhos, do porteiro do prédio, dos meninos do supermercado caso haja algum incidente. Ela também anda com uma pulseirinha no braço com seus dados básicos”, afirma.
As filhas e filhos que cuidam de mães ou pais com Alzheimer
Perfil
> 93% são mulheres
> 32 anos é a média de idade
> 34% têm como nível educacional o ensino médio
Família
> 68% têm filhos, e 54% são casados
> 42% são irmãos mais novos
> 57% vivem com o cônjuge e a mãe e/ou o pai com Alzheimer
Cuidados
> 51% trabalham fora, além de cuidar dos pais
> 53% não têm ajuda de cuidador ou empregada doméstica
> Mais de 5 anos é o tempo em que a maioria cuida da mãe ou do pai
> 49% das filhas apontam como muito boa a relação com a mãe antes da doença
Fonte: Pesquisa de pós-doutorado em Gerontologia pela USP, em parceria com a Universidade Central da Flórida; questionário online com 716 filhas e filhos cuidadores
Já Tabata diz ter tido muito apoio de grupos, como a Associação Brasileira de Alzheimer e a Alzheimer 360, que fornecem cursos de formação, amplo material informativo e apoio emocional para lidar com a mãe, que passa parte do dia em um centro de assistência ao idoso.
“Essas redes nos fortalecem com a troca de informações com familiares e profissionais da área, mas, no final, em casa somos só nós. Há dias em que é muito pesado. São as alucinações, as confusões mentais, as noites sem dormir, os gritos, as resistências pra tomar um banho, as convulsões, os tombos, batidas de cabeça e idas ao hospital.”
Segundo a pesquisadora da USP, dividir a responsabilidade com os irmãos é uma boa maneira de evitar conflitos.
“Para ser bem-sucedida, a inversão de papéis, precisa, especialmente, estar ancorada no vínculo e na boa qualidade da relação entre filhos cuidadores e seus pais e mães com demência antes e após a enfermidade”, diz a pesquisadora.
Ainda segundo ela, é preciso haver também coesão entre os membros da família na cooperação e divisão de tarefas, suporte social, serviços de saúde e políticas públicas.
A pesquisa constatou também que as filhas tendem a relatar sintomas de depressão mais persistentes ao longo do tempo se comparadas com os filhos, bem como maiores custos pessoais e emocionais relacionados com a prestação de cuidados. No entanto, as filhas também relatam mais recompensas na prestação de cuidados do que os filhos.
“É muito amor por essa magrela [pela mãe]. No meu acidente, ela ficou do meu lado, internada junto comigo, por quatro meses. Amo sentir o cheirinho dela e dar beijinho de boa noite. Às vezes me sinto culpada por perder a paciência ou por dividir os cuidados entre ela e meu filho. É cansativo, estressante, mas é minha mãe”, diz Tabata.
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