Descrição de chapéu tragédia dos sem-teto

'Me tira daqui', pediu Ricardo antes de morrer engolido por prédio

Ele é a única vítima achada sob escombros; seis estão desaparecidas

Ricardo em seu apartamento no edifício Wilton Paes de Almeida em 2015
Ricardo em seu apartamento no edifício Wilton Paes de Almeida em 2015 - Plínio Hokama Angeli
São Paulo

“Eu tô no prédio que está pegando fogo!”, avisou Ricardo Galvão, o Tatuagem, em ligação ao serviço de emergência da Polícia Militar de São Paulo. O diálogo de 53 segundos que se seguiu mostra o desespero da vítima.

Encurralado pelo fogo, o morador da ocupação de sem-teto no prédio Wilton Paes de Almeida, que caiu após incêndio no centro da capital paulista no dia 1º, morreu enquanto era resgatado pelos bombeiros.

Entenda o que já se sabe sobre o desabamento de prédio em SP

O corpo da vítima foi localizado na última sexta (4) sob os escombros. Neste domingo (6), as equipes de resgate localizaram mais restos mortais —uma arcada dentária e parte de tecido— entre os destroços que, segundo o secretário de Segurança, Mágino Alves, eram de Ricardo.

O Corpo de Bombeiros também atualizou nesta segunda o número oficial de pessoas desaparecidas em decorrência do desabamento do prédio. Uma pessoa, que não teve o nome informado, foi incluída na lista após parentes relatarem o desaparecimento. 

Também estão sendo procurados: a faxineira Eva Barbosa, 42, e o marido dela, Valmir de Souza Santos, além de Selma Almeida da Silva, 40, e seus filhos gêmeos, Wendel e Wender, 10. A prefeitura também diz que ainda não localizou o paradeiro de 49 pessoas que habitavam a ocupação após a tragédia.

No áudio, antecipado pelo Fantástico e depois obtido pela Folha, Ricardo diz que estava na cobertura do prédio. Ele havia deixado o edifício assim que o fogo começou a se alastrar, mas voltou para ajudar seus vizinhos —principalmente idosos e crianças. ​

Ricardo passa o endereço do imóvel e é avisado pela atendente que os bombeiros já estavam a caminho. “Por favor, o fogo já [está] aqui em cima perto de mim”, diz ele.

A vítima diz que teve gente que não conseguiu subir por causa da fumaça. “É muito tóxica”, relata. O desespero só aumenta. “Por favor, manda o resgate pra mim aqui.”

O último pedido de socorro conhecido feito por Ricardo se converteu em uma súplica. “Por favor, manda o helicóptero. Me tira daqui.”

Até os bombeiros chegarem ao local, Ricardo passou a descer o edifício pelo cabo de aço do para-raios. O fio só ligava o terraço ao 15º andar do prédio. A vítima ficou pendurada à espera dos bombeiros.

MAIS 30 SEGUNDOS

O sargento do Corpo de Bombeiros Diego Pereira da Silva Santos, 32, foi a última pessoa a ter contato com Ricardo. Ele fazia parte da equipe que trabalhava na retirada das pessoas do prédio vizinho ao que pegou fogo. “Consegui falar com ele através de uma janela do 15º andar do edifício do lado. Pedi calma para ele não pular porque ele estava estabilizado”, disse o sargento.

Para facilitar o acesso, foi aberto um buraco na parede do edifício vizinho, por onde a equipe dos bombeiros conseguiu passar o cinto alemão, que na prática serviria como uma cadeira para trazer Ricardo para baixo, preso por tórax e por ao menos uma das pernas. “A gente acreditava em todo o momento que conseguiríamos tirar ele de lá”, contou Santos.

Segundo relato do sargento, Ricardo estava tranquilo, mas só conseguiu agarrar o cinto na terceira vez que este foi lançado. “Eu falava para ele confiar em mim que a gente tiraria ele de lá", relembrou. “Eu só ouvia ele pedindo socorro e pedindo ‘me tira daqui por favor’. Eu tentei acalmá-lo, ele sentiu confiança e seguiu as instruções”.

Ricardo já terminava de se amarrar com o cinto e a equipe se preparava para retirá-lo quando o prédio colapsou, de acordo com Santos. "Levaria de 30 a 40 segundos para terminar o processo. Era o tempo de proteger ele vivo e eu dar a ordem para ele sair", relatou o sargento.

CÉLULAS

No sétimo dia de buscas, o Corpo de Bombeiros diz que chegou ao ponto dos escombros que concentra os andares mais críticos, nos quais moravam pessoas.

As equipes de resgate suspeitam que nesses espaços possam haver células de sobrevivência —vãos que se formam sob os destroços e possuem condições para uma pessoa sobreviver, com temperatura adequada, oxigênio e espaço. Por isso, não descartam a existência de sobreviventes.

“Temos a altura de três metros de escombros na superfície, mais ou menos. Embaixo, temos compactados seis metros de escombros. Ou seja, temos de oito a dez andares abaixo. Há cerca de nove metros de escombros a serem retirados, e ali podem existir espaços, e, quem sabe, gente viva”, disse o capitão Marcos Palumbo, porta-voz dos bombeiros.

As buscas contam com o apoio de maquinário pesado. Para Palumbo, as operações precisarão ser ainda mais cuidadosas. “Daqui para frente, estamos no ponto crucial. Sabíamos que não haveria vítimas nos andares superiores, já que do 11º andar para cima ninguém morava. Acabamos de entrar nos andares abaixo disso, e vamos agir com cuidado para não causar danos", afirmou o porta-voz da corporação.

CURTO-CIRCUITO

A polícia disse que, após ouvir uma testemunha, concluiu que um curto-circuito no quinto andar, provocado por excesso de aparelhos ligados em uma tomada foi a causa do fogo no prédio. No local havia quatro pessoas: marido, mulher e duas filhas. 

Segundo a Secretaria de Segurança Pública, uma pessoa prestou depoimento na sexta no 3º DP (Campos Elíseos). Um inquérito também foi instaurado no Deic  (Departamento Estadual de Investigações Criminais) ​para apurar a cobrança de aluguel dos moradores de ocupações do centro de São Paulo. 

O desabamento provocou ainda a interdição de cinco imóveis em seu entorno, sendo quatro prédios e uma igreja. Segundo a Defesa Civil, todos os bloqueios são totais e não há previsão de liberação. Não foi encontrado risco iminente de colapso em nenhum deles, mas eles seguem monitorados pelo órgão.

Um desses imóveis é o edifício Caracu, localizado na rua Antônio de Godói, que foi liberado para a entrada de moradores pela primeira vez nesta sexta-feira. As pessoas puderam retirar pertences pessoais, como documentos e medicamentos, mas não puderam permanecer no local. 

Também estão interditados uma igreja, no número 34 da av. Rio Branco; um prédio, no largo do Paissandu, 132; e um edifício estreito da Antônio de Godói, que ficou com marcas das chamas em sua fachada. Essa última construção conta como duas interdições por ter duas numerações (8 e 26).

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