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Mistura de conceitos prejudica compreensão de déficit habitacional

Falar em 6,35 milhões de famílias sem casa no país dificulta a aplicação de políticas eficientes

Barracos da favela do Cimento, ao lado da av. Radial Leste, zona leste de SP
Barracos da favela do Cimento, ao lado da av. Radial Leste, zona leste de SP - Zanone Fraissat/Folhapress
Luiza Petroll Rodrigues Carlos Góes

Guilherme Boulos, pré-candidato à Presidência pelo PSOL, tem tentado chamar atenção à questão da habitação no Brasil. Em artigo para a Folha, citou um número alarmante: seriam no Brasil “6,35 milhões de famílias sem casa”.

Normalmente, quando pensamos em “6 milhões de famílias sem casa”, a imagem que vem à nossa cabeça é a de 6 milhões de famílias em situação de rua, o que, felizmente, não é verdade. 
Segundo estimativas recentes de técnicos do Ipea, há 101 mil pessoas em situação de rua no país. Um número preocupante —mas não comparável ao número citado por Guilherme Boulos.

O pré-candidato do PSOL usou um número da Fundação João Pinheiro, que tem um conceito bem abrangente de déficit habitacional.

O estudo inclui como déficit qualquer domicílio que se encaixe em pelo menos uma das seguintes características: improvisados, rústicos, em cômodos, com ônus excessivo de aluguel, adensados e em coabitação.

Alguns desses conceitos fazem sentido. Poucos discutiriam que domicílios improvisados (barracas de lonas ou pessoas morando debaixo de viadutos) ou rústicos (paredes que não são de alvenaria, teto de palha ou chão de terra batida) devem contar para o déficit habitacional.
Os critérios seguintes são mais subjetivos. 

Um casal que imigrou para São Paulo e vive em um cômodo dividindo um apartamento com outros (numa república) contaria para o déficit habitacional, pois constituem um domicílio em cômodo.

Uma família com renda de até R$ 3.000 que gasta mais de 30% de sua renda com aluguel também entra para o déficit habitacional, por ônus excessivo. 

 

De duas famílias com a mesma renda, se uma decidiu morar numa região mais central e pagar mais com aluguel e outra preferiu morar mais longe e pagar o mesmo valor na parcela de sua casa, só a primeira contaria para o déficit.

Outro critério é o de adensamento excessivo: se há em média mais de três pessoas por dormitório, isso contaria para o déficit habitacional.

Imagine um casal que mora num apartamento de um quarto com duas crianças. Certamente isso denota recursos limitados. Mas é razoável colocar essa família na mesma categoria de quem mora debaixo do viaduto?

Por último, ocorre coabitação quando há mais de um núcleo familiar vivendo no mesmo domicílio. Há uma miríade de razões para a coabitação acontecer. 
Mas uma família que mora com seus pais idosos não pode ser considerada parte do problema habitacional.

O maior problema do número de Boulos é que a maior parte desse déficit se concentra nos critérios mais discutíveis. Cerca de 50% do déficit calculado por esses critérios corresponde a ônus excessivo do aluguel. 

Coabitação familiar contribui com 30% e adensamento excessivo, com 5%. Somente 15% do déficit corresponde a domicílios precários.

Toda essa confusão em torno do conceito acaba por tornar mais difícil a compreensão do problema real, qual seja: qual é a melhor política pública para amenizar limitações habitacionais da população brasileira?

Há dois grupos distintos, tanto em circunstâncias quanto em soluções propostas, que devem ser foco de políticas públicas: pessoas em situação de rua e pessoas em habitações precárias.

Para a população em situação de rua, é necessária uma estratégia mais ampla, que envolva também atenção à saúde e apoio comunitário. 

Isso porque, mesmo doar uma casa a cada uma dessas pessoas, não necessariamente impediria seu retorno à rua, por motivos complexos, que incluem questões de saúde mental, abandono e vícios.

As famílias em domicílios precários, concentradas em estados pobres e regiões rurais, também demandam atenção urgente, pois sua situação habitacional representa riscos à saúde e à vida.

A maior parte dessas famílias tem renda inferior a dois salários mínimos e renda muito variável entre os meses, o que torna uma solução de mercado para este público bastante difícil. 

Uma política pública de subsídio é necessária, mas, como os recursos públicos são escassos, é preciso agir de forma eficiente.

Atualmente, há subsídios ao crédito habitacional de famílias de renda média e falta subsídio aos miseráveis. 

Por exemplo, as faixas superiores do programa Minha Casa Minha Vida são destinadas a famílias com renda superior a R$ 2.600 —ou seja, excluem quase todos os domicílios que estão entre os 40% mais pobres.

Há ainda vantagens tributárias na troca de imóveis disponíveis mesmo a famílias ricas. Eliminando esses tipos de subsídios, seriam liberados recursos para resolver primeiro o problema das famílias mais expostas ao risco. Embora representem só 2% das famílias brasileiras, elas são uma parcela muito vulnerável.

O número de domicílios precários caiu 25% de 2007 a 2015, mas a questão habitacional continua demandando políticas públicas. 

Contudo dizer que há 6 milhões de pessoas sem casa no Brasil distorce a magnitude do problema e uniformiza populações em situações bem distintas. 

Ao insinuar que cerca de 10% da população brasileira não tem casa, Boulos acaba dificultando a implementação de políticas habitacionais eficientes.

Rodrigues é mestre em economia pela PUC-SP e especialista em crédito habitacional; Góes é pesquisador-chefe do Inst. Mercado Popular e doutorando em economia pela Univ. da Califórnia

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