Descrição de chapéu

Morri a 12 carros da bomba, após quatro horas de fila no posto

Repórter da Folha narra maratona à espera de gasolina na zona oeste de SP

Ivan Finotti
São Paulo

O sol abrasador da tarde das 15h de segunda (28) explode em meus óculos dourados e brilha em minha jaqueta de couro negra. Minha gangue troca informações sobre onde encontraremos combustível para nossas máquinas empoeiradas.

“Parece que em Pirituba já estão chegando caminhões-tanque”, arrisca o rapaz do Punto vermelho e blusa esportiva branca. “Em Guarulhos, há filas separadas para moto, carros e gente com galões”, revela o motorista de aplicativos com camiseta dos Ramones, que está pela segunda vez nesta fila em dois dias.

 

Não acreditamos nos informes estatais de regularização. Estamos em estado de emergência. Por isso, graças ao aprendizado obtido nos filmes pós-apocalípticos de "Mad Max", saímos de casa correndo riscos e nos encontramos na fila biquilométrica que vai dar no posto de gasolina da rua Heitor Penteado com a rua Pereira Leite, na zona oeste da desabastecida cidade de São Paulo.

Não trouxemos bumerangues afiados ou escopetas nem comida enlatada de cachorro para matar a fome. No caso, bastou um cartão de crédito. Ou de débito.

Eu vi uma fila de 2 km serpenteando pelas ruazinhas da Vila Madalena, passando pela Natingui e terminando na Francisco Isoldi. Eu vi quatro carros atrás do meu Toyota Hilux SW4 1999 (construído em Tanaka, Japão) desistirem desanimados porque a fila não se moveu durante os primeiros dez minutos.

Eu ouvi guerreiros no meio do caminho: “Estou aqui há três horas, acho que falta mais uma”. Discussões: “Mas não vai guardar lugar para o seu marido de jeito nenhum, dona!!!” Eu vi amizades sendo feitas. O dia em que a Terra parou, cantou Raul Seixas.

São 600 carros na minha frente, pelas minhas contas. Após uma hora, andei 600 metros. Pelo mapa de trânsito do celular, vejo que a fila cresceu mais 300 metros, está em torno dos 2,5 km agora.

Andamos mais um tanto e descemos dos carros para fazer uma nova rodinha no meio da rua. Meus asseclas trazem muitas novas informações:

1. O posto à frente está liberando 20 litros por cabeça.

2. Um motoqueiro desce a rua (a solidariedade na miséria) e informa que não há mais gasolina, apenas etanol (problema sério, minha caranga não bebe álcool).

3. A equipe aumenta e um novo integrante revela áudio no qual um caminhoneiro diz que a gasolina deve aumentar para compensar a queda do diesel: “Abram o olho!”

4. Um agente infiltrado no posto informa que há gasolina para carros, acabou apenas para motos (informação 2 momentaneamente revogada).

5. Eu informo que estou ficando de saco cheio de ligar e desligar o carro para andar de dois em dois metros, no que todos concordam e mexem a cabeça (na verdade, há uma informação extra aqui: não sei quanto combustível resta no tanque; temo que vá acabar a qualquer momento).

Duas horas de fila, 1,1 km percorrido e três más notícias:

1. O rapaz do Punto vermelho diz que um Spacefox da PM anotou nossas placas ali atrás. Por quê? “Acho que eu estava com a rabeira naquela faixa de pedestres. E você estava com a frente do carro um pouco em cima…” “Oh, não basta esse sofrimento?”

2. A dona de serviço de vans escolares, alguns carros à nossa frente, está extremamente chateada porque precisou buscar as crianças de táxi. A solução, segundo ela, e logo encampada por todos os outros, é o regime militar. Pergunto no que isso ajudaria.

“Sei que ditadura é coisa brava. Mas o shopping fechou? O comércio fechou? As escolas fecharam? Não. O povo não é unido. Então tive que pagar táxi para levar e buscar crianças hoje. Se estivéssemos no regime militar, os caminhoneiros nem teriam começado essa greve.” Simples assim.

3. Vontade de ir ao banheiro (acabo fazendo xixi atrás de uma árvore num terreno baldio, que situação…)

Um rapaz sorridente desce a rua com garrafa térmica e isopor. É o estudante de arquitetura Alexis Dado, morador da vizinhança que está ajudando a mãe a tirar um troco. “Sanduíche de queijo, presunto, tomate e alface por R$ 6, vendi 16, sobrou um. Cafezinho está R$ 1.” Pego o último.

Duas horas e meia, ainda faltam 750 metros, 180 carros. Três horas, 450 metros, 110 carros, chego na rua Pereira Leite, agora só falta a subida final. Em breve terei informações confiáveis se há gasolina ou apenas etanol nas bombas. Por enquanto, como o sanduíche do futuro arquiteto. Aprovo, parabéns. 

Um boato corre: acabou o álcool. Será que se trata da cerveja na loja de conveniência do posto? Atribuo a notícia ao pessimismo natural das pessoas, uma necessidade de dor extra porque estamos próximos ao fim da provação.

Três horas e meia, 250 metros, 60 carros. Agora sim informação interessante: há gasolina no reservatório, mas não para clientes comuns. Ela está reservada para viaturas, ambulâncias e, talvez, carros importados como o de Mad Max. Saberemos em minutos.

Estou a 140 metros do posto, são 18h45. Os motoqueiros estão inconformados. “Acabou tudo, acabou tudo”, bradam. Não acredito neles. Não acredito no governo. Não acredito em Elvis.

A fila faz um nó no trânsito nesse horário de rush. Há carros estacionados, depois as motos, depois nós, em seguida ônibus querendo subir a rua. Do outro lado, mais carros estacionados e ônibus querendo descer a rua. Não cabe. Está mais paralisado que caminhoneiro.

“Fechou o posto”, um cara diz, descendo a rua. Outro vem com vã esperança: “Acabou, mano. Diz que só às 3h da manhã.” Estou a 50 metros. Desço e vou colher informação em primeira mão. Está mesmo fechado. 

O frentista me diz que, na noite anterior, um caminhão havia chegado entre 0h e 1h, mas não sabia se hoje aconteceria o mesmo. “Pode não vir, ou pode mesmo vir antes. Eu, se fosse você, ficaria onde está.” Se você fosse eu, também acho que você deveria ficar, mas como eu sou eu, não ficarei de jeito nenhum, concluo.

Morri a 12 carros da bomba, após quatro horas de fila. No mundo pós-apocalíptico de Mad Max, a gasolina é rara e mata-se por ela. Mas lá, diferentemente daqui, ela nunca acaba.

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