Descrição de chapéu tragédia dos sem-teto

Mulheres empurradas para invasões despontam como líderes de sem-teto

Em São Paulo, ocupações têm comando feminino e solteiras atrás de segurança

Foto mostra Sirley sorrindo, com um óculos na cabeça
Sirley Aparecida da Silva, 62, moradora de ocupação na rua Benjamin Constant, no centro de São Paulo - Eduardo Anizelli/ Folhapress
Marina Estarque Thiago Amâncio
São Paulo

​Com a promessa da casa própria, em 1998, Neti entrou com o marido e duas filhas pequenas em um imóvel, às pressas, após quatro meses como moradores de rua. Ela não entendia o motivo da correria. "Aquela multidão, o povo gritando: 'Vamos, vamos, entra!'. Me disseram que a casa era uma conquista nossa, então por que tinha que entrar tão rápido?", lembra, rindo.

Lá dentro, escolheu um quarto grande, com dois janelões. "Eita, legal aqui", pensou. Só depois soube que ali era um hospital abandonado. Era a sua primeira ocupação.

Vinte anos depois, Ivaneti de Araújo, 45, a Neti, é a principal líder do Movimento de Moradia na Luta por Justiça e comanda duas invasões no centro de São Paulo: uma na rua Mauá, com 237 famílias, e outra na Prestes Maia, com 490. Nessas duas décadas, passou por vários endereços, mas criou raízes no prédio da Mauá, onde vive há 11 anos.

Assim como ela, por diferentes motivos, várias mulheres vão morar nesse tipo de moradia improvisada e, depois, se tornam líderes de movimentos e ocupações na cidade. No caso de Neti, ela e o marido perderam os empregos e foram viver na rua. Pouco depois, ele deixou a família.

Na terça-feira (1º), o desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, deixou ao menos um morto, cinco desaparecidos e escancarou o problema da falta de moradia na cidade, trouxe luz à precariedade de prédios invadidos e mostra que grupos marginalizados, como mães solteiras, refugiados e ex-moradores de rua encontram força e união nessas habitações.

A cidade de São Paulo tem cerca de 250 imóveis ocupados, sendo 70 deles no centro. Na Mauá, Neti mora com seu companheiro atual, cinco filhos e um cachorro, Spike.

Oriunda do interior do estado, trabalhou desde os nove anos na roça, estudou até a quinta série e, em São Paulo, vende roupas como sacoleira.

A história de Neti é comum nas ocupações. "A maioria dos moradores foi ou é mãe solteira, que o marido foi embora. E a maioria das lideranças é mulher", diz Antônia Rodrigues, 55, coordenadora do Movimento de Moradia Famílias Independentes. Tôninha, como é conhecida, gerencia três prédios invadidos na cidade.

A paraibana entrou na luta por moradia quando chegou a São Paulo, aos 22 anos, com os pais e 11 irmãos. Como não conseguiam alugar um imóvel, participaram da ocupação de um terreno na zona leste. "Construímos nossa casa lá, há 33 anos", conta ela, que mora em um quarto no centro, cedido por uma amiga.

Como Neti, Tôninha não completou a escola. Trabalhou desde cedo, ajudando o pai na roça, e hoje é sacoleira.

Para ela, as mulheres se tornam líderes nas ocupações pelo papel que desempenham nas famílias. "Elas se esforçam pelos filhos, para não ficarem na rua. A mulher tende a ser mais acolhedora, isso é importante no movimento. Elas cuidam da ocupação e das pessoas que chegam", diz.

Por essa acolhida, as líderes femininas viram referências e são procuradas incessantemente para resolver problemas nas ocupações —é difícil ficar dez minutos com elas sem alguma interrupção.

Também é comum ver mulheres porteiras, que ganham um salário para cuidar da entrada. "Aqui mulher tem prioridade", diz Tôninha.

Jomarina Fonseca, 60, líder do Movimento de Moradia Central e Regional e de quatro ocupações, acha que o machismo atrapalha a participação masculina. "Eles têm vergonha de serem vistos como alguém que não pode pagar o aluguel", diz Jomarina, a Jô.

Ela afirma ainda que muitas mulheres buscam ocupações fugindo de bairros pobres, por medo de que os filhos se envolvam no crime.

Esse foi um dos motivos que levou a maranhense para a causa, nos anos 2000. Jô estudou até a oitava série e foi levada para São Paulo "pela patroa, para trabalhar em casa de família". Anos depois, diarista e com três filhos para criar sozinha, viu as dívidas acumularem e trocou a periferia pelo edifício Prestes Maia.

Apesar de viverem em ocupações, Jô e Neti não reivindicam moradia para si mesmas. As duas já receberam casas de programas habitacionais.

Neti cedeu seu apartamento para a filha. Depois de décadas no movimento, não conseguiu se afastar da causa e da vida na ocupação, onde seus filhos brincam no corredor e os vizinhos se ajudam. "A pessoa se tranca no seu mundo, sozinha. Não me adaptei. E queria continuar a luta", conta.

Jô diz que não se mudou para o apartamento, na Cidade Tiradentes, no extremo leste, porque era muito longe do trabalho. "Tinha que cruzar a cidade. O poder público acha que pobre não tem o direito de escolher onde morar e te joga na periferia, mas está cheio de prédio vazio no centro que devia ter função social."

Seu imóvel, segundo ela, ficou com a filha, mas está vazio no momento.

Já na ocupação na Benjamin Constant, no centro, Sirley da Silva, 62, cuida de todos: toma conta das crianças enquanto os pais trabalham, lava roupas e ajuda na portaria.

Ela vive lá com a neta há um ano, mas há 20 está envolvida com movimentos de moradia. "Nunca gostei de depender de ninguém. Fui à luta. Sozinha para criar os filhos e trabalhar, não tinha condição de pagar um aluguel, por isso vim para ocupação", conta ela.

Uma das coordenadoras do prédio é Maria Aparecida Dias, 61, que se mudou para lá com o marido há um ano, depois que perdeu filho, sogro e uma marcenaria na zona leste, após sofrerem um golpe.

"Vocês acham que nós que moramos em ocupação não gostaríamos de ter a segurança de uma casa? A gente chegou sem nada, sem ter o que comer. E nos acolheram", diz.

Refugiados e imigrantes também são comuns nas ocupações. Eram 46 dos 455 moradores do Wilton Paes de Almeida, segundo cadastro na prefeitura de março. Dezessete deles (a maior parte), de Angola, como Olívia Pemba, 35, que vivia ali com o marido e três filhos.

 

Fugindo das ameaças de um sócio, a família resumiu as posses de uma vida em algumas malas com roupas e documentos e chegou ao Brasil no ano passado. Moravam no terceiro andar do prédio que desabou. Houve tempo apenas de pegar celular e documentos quando começou o fogo.

Foi Theresa Senga, 28, também angolana, que os levou para outro prédio invadido, no centro. Theresa fugiu do seu país há três anos, após um chefe desconfiar de que ela vira documentos sigilosos.

"No centro você nunca vai achar uma casa por R$ 600 que seja. E imagina o tamanho. Tenho três filhos e um marido, como vou morar assim? E a gente precisa viver no centro pelos nossos empregos", diz Theresa.

Débora Mambombe, 16, filha de Olívia, tem dificuldades de se adaptar. Sente falta da família, das amigas e da escola que deixou para trás —não gosta do colégio público brasileiro, onde cursa o 2º ano: diz que os alunos não respeitam os professores.

Há quatro meses nasceu o único filho brasileiro de Olívia, Grade. É assim que os angolanos dizem "graças a Deus" em quicongo, língua falada no noroeste do país.

Além do idioma, Simão Victor, 33, fala português, inglês, mandarim, e oito línguas africanas. Mesmo assim, não consegue arrumar emprego como mecânico no Brasil, onde veio fazer um curso técnico. Já morou na África do Sul, também estudando, e na China com o pai, que é comerciante.

Sem dinheiro, acabou numa ocupação, depois de viver em abrigos e na rua. Ainda sonha com a casa própria, mas parou a busca. "Nem adianta procurar, como vou pagar?".

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