Polícia mata mais homens, negros e jovens no estado de São Paulo

Segundo autora de estudo inédito, letalidade policial é vista como prevenção

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Ação da Rota termina com seis suspeitos mortos em Parada de Taipas, na zona norte de São Paulo
Ação da Rota termina com seis suspeitos mortos em Parada de Taipas, na zona norte de São Paulo - Danilo Verpa - 05.ago.11/ Folhapress
São Paulo

​Há mais homens, negros e jovens entre pessoas mortas em decorrência de intervenção policial do que entre as vítimas de homicídio doloso no estado de São Paulo, segundo pesquisa inédita.

De 2014 a 2016, 16% dos mortos por policiais tinham menos de 17 anos, o dobro da proporção daqueles alvo de homicídio geral (8%). Além disso, 67% das vítimas fatais de ações policiais eram pretos ou pardos, contra 46% do total de assassinatos no estado.

O número de mortos pelas polícias paulistas vem crescendo e bateu recorde em 2017, com 943 casos —o pico dos últimos 25 anos, superado apenas pelos 1.470 óbitos de 1992, quando o dado ainda não incluía pessoas mortas por policiais fora de serviço.

Para a socióloga Samira Bueno, autora do estudo, fica evidente a influência de fatores raciais e geracionais no uso da força letal pelos policiais. 

Diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança, ONG que reúne especialistas no tema, Samira demonstrou que 6,1 adolescentes foram mortos por agentes a cada mil jovens apreendidos em flagrante de 2013 a 2016, enquanto, entre adultos, o índice foi de 3,4 mortos para cada mil presos. Ela analisou 3.107 registros nesses quatro anos.

“Isso mostra que interação da polícia com o adolescente é mais violenta. Existe a ideia de que essa letalidade pode funcionar como uma política preventiva. De que, se você poupar o lobo hoje, vai condenar a ovelha amanhã”, afirma.

Segundo ela, parece haver um descompasso entre o que policiais constroem como a imagem do criminoso e as vítimas de suas ações, os mais jovens. “Muitas delas tinham algum vínculo com as drogas, o que não necessariamente as conecta ao tráfico ou a um crime em específico.”

Entre as vítimas mais novas de intervenções policiais, há garotos de 10 e 11 anos de idade, todos de regiões periféricas da Grande São Paulo.

Socióloga Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança e autora do estudo
Socióloga Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança e autora do estudo - Marlene Bergamo/ Folhapress

Em nota, a PM avaliou que “jovens adultos e adolescentes que ingressam no crime possuem uma intempestividade não vista em criminosos mais velhos”.

De acordo com a PM, cerca de 25% dos roubos dos últimos cinco anos com autor identificado ocorreram com a participação de adolescentes e cerca de 60% das mortes em decorrência de intervenção policial acontecem em flagrantes de roubo. 

“É compreensível, portanto, que haja essa diferença percentual”, diz a nota, que destaca: “A PM não comemora as mortes, e sim as lamenta”.

Para a socióloga, há um aspecto perverso nessa estatística. “O que está em jogo não é matar bandido, ainda que boa parte da população defenda isso, e sim um mandato que tem sido dado aos policiais para que matem quem eles pensam que é bandido, mesmo que o indivíduo não esteja cometendo ato ilícito 
nem represente ameaça.”

Essa lógica do estudo emergiu em entrevistas realizadas com 16 ex-PMs no Presídio Militar Romão Gomes, na capital. A maioria dos que estavam presos ali cumpria pena por homicídio, e nenhum era mulher. Entre os entrevistados, 75% haviam integrado grupamentos tidos como de “elite”, como Rota ou Força Tática.

Nas conversas, segundo a pesquisadora, ficou claro que a morte fazia parte do cotidiano deles, bem como a ideia de que as ações letais seriam depurativas, justas e desejadas.

“Existe certa surpresa por parte dos entrevistados com a prisão porque, na cabeça deles, estavam fazendo justiça ou aquilo que era certo”, relata Samira, que nomeou sua pesquisa “Trabalho sujo ou missão de vida? Persistência, reprodução e legitimidade da letalidade na ação da Polícia Militar de SP”.

“Alguns desses policiais eram parabenizados pelo seu comando quando uma ocorrência terminava com a morte do suposto agressor”, diz.

No domingo (13), o governador de São Paulo, Márcio França (PSB), homenageou com flores a PM Kátia Sastre, que reagiu a um assalto na porta da escola de sua filha, em Suzano (Grande SP), disparando três vezes contra um assaltante, que morreu.

A ação da policial foi correta, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, mas, ao enaltecê-la, o governador pode passar mensagem de incentivo à morte de agressores.

França é candidato à reeleição e sua ligeireza em tratar de um assunto tão delicado foi interpretada como oportunismo eleitoral, uma vez que contradiz diretrizes do comando da PM, que busca reduzir a letalidade policial.

BÔNUS POLICIAL

Na contramão deste objetivo, o secretário de Segurança Pública, Mágino Alves Barbosa Filho, decidiu suspender a redução no bônus de policiais nos casos em que houve aumento de mortes provocadas por eles. O bônus, pago por cumprimento de metas, pode chegar a R$ 2.000.

O discurso do governador —que afirmou que ofensas ao uniforme da Polícia Militar podem representar risco de morte a agressores— não é novo no estado. Em 2012, seu antecessor, o hoje presidenciável Geraldo Alckmin (PSDB), disse ao comentar ação da PM que terminou com nove mortos no interior de SP: 
“Quem não reagiu está vivo”.

Estudos apontam que um em cada quatro policiais é morto fora de serviço. A maioria estava armada e, em mais da metade dos casos, o policial foi baleado na rua, o que sugere que ele tenha sido vítima de um crime ou intercedido em uma ocorrência, mesmo sem o aparato necessário.

A queda no índice de homicídios em SP, de 65% de 2001 a 2016, não se traduziu numa redução da letalidade policial, que aumentou 42% no período. Com isso, aumentou o peso das mortes por policiais no total de homicídios. Hoje, segundo o Instituto Sou da Paz, um a cada cinco óbitos no estado é provocado pela polícia.

“É politicamente conveniente manter separadas as mortes decorrentes de intervenção policial dos homicídios. Hoje, se fossem somados, o índice de assassinatos em SP subiria dois pontos”, diz Samira, numa referência à atual taxa estadual de oito mortos por 100 mil habitantes.

As mortes pelas polícias estão concentradas em 20 municípios —em algumas regiões, elas correspondem a 45% do total de óbitos. Segundo ela, isso se deve ao fato de não haver políticas claras de contenção do uso da força e, no caminho contrário, ser disseminada a ideia de que o policial é um caçador de bandidos.

Samira, porém, destaca que este não é um problema generalizado na Polícia Militar. “Uma coisa é achar que bandido bom é bandido morto, outra é apertar o gatilho.”

Para ela, reverter esse quadro implica em três medidas fundamentais. Primeiro, publicar periodicamente dados de letalidade policial por batalhão. “O cidadão tem o direito de saber da conduta do policial da sua área.”

Segundo, responsabilizar os comandos por desvios de policiais sob sua alçada. “É muito cômodo depois culpar o indivíduo pelo problema.” Finalmente, diz que indenizar famílias de vítimas seria interessante. “Quando esse dinheiro sair do orçamento das polícias, o quadro deve mudar.”

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