Prédios invadidos por sem-teto acumulam perigos em série em SP

Esqueleto vizinho da praça da Sé está entre casos emblemáticos sob risco

Fachada do edifício "Caveirão", que fica na rua do Carmo, região da Sé
Fachada do edifício "Caveirão", que fica na rua do Carmo, região da Sé - Eduardo Anizelli/ Folhapress
 
São Paulo

​​Na rua do Carmo, ao lado da praça da Sé, centro de São Paulo, o guardador de motos Wanderson Bispo, 19, ficou intrigado com os pedestres que passaram a parar na calçada e a observar o edifício invadido onde ele mora.

“Até ontem ninguém via esse prédio. Agora, todo mundo para e fica olhando”, afirma.

Wanderson se refere ao súbito interesse gerado pela segurança de prédios invadidos por sem-teto depois do incêndio seguido de desabamento de um edifício de 24 andares no largo do Paissandu, na madrugada de terça-feira (1º).

O endereço onde vive Wanderson é um esqueleto de um prédio particular —também com 24 andares— que ficou no meio do caminho entre a construção e a sua ruína. Se tivesse sido concluído, deveria ser um edifício-garagem.

Onde existem, as paredes são de tijolos expostos que não chegam a fechar completamente um andar. As pilastras estão tão desgastadas que deixam aparecer as vigas de metal que as sustentam.

Tábuas e pedaços de madeira completam a fachada, e as escadas entre os andares também são de madeira —material combustível em incêndios.

“Eu tenho medo. Mas agora no tempo seco esse prédio não cai. O perigo é quando começa a chover e caem alguns pedaços da laje”, diz Wanderson.

O prédio é só um dos 70 invadidos que deverão ser vistoriados por uma força-tarefa anunciada pelo prefeito Bruno Covas (PSDB) após a queda do edifício ocupado por sem-teto do largo do Paissandu.

O pente fino deve começar na segunda (7) e durar 45 dias, podendo levar a interdições. “Agora é verificar, a partir do levantamento do nível de criticidade, se é o caso de pedir alguma medida judicial, de fazer alguma intervenção. Vamos avaliar caso a caso”, afirmou Covas.

Nesta quarta-feira (2), os bombeiros mantinham os trabalhos nos escombros em busca de vítimas ou sobreviventes da queda do prédio no dia anterior —havia pelo menos quatro pessoas desaparecidas.

O desabamento foi classificado pelo governador Márcio França (PSB) como “tragédia anunciada”. A situação precária do imóvel já havia sido denunciada por vizinhos —e confirmada por vistoria dos bombeiros em 2015. Mas ele não foi interditado.

O Ministério Público Federal também disse que já havia recomendado à Superintendência do Patrimônio da União, em novembro de 2017, a reforma estrutural do prédio, apontando precário estado de preservação, a “quase total ausência” de sistemas de proteção contra incêndio e bloqueio de rotas de fuga. O órgão instaurou procedimento para apurar as responsabilidades pelo desastre.

O secretário da Segurança Pública, Mágino Alves, diz que a principal hipótese é de que o fogo tenha começado por acidente doméstico —não se sabe se vazamento de gás ou explosão de panela de pressão.

A 2 km do prédio da rua do Carmo, próximo à universidade Mackenzie, quem vive em uma invasão na rua Cesário Mota Júnior e se preocupa com a segurança é a cabeleireira angolana Maria (nome fictício).

“Quando vi o que aconteceu com aquele prédio, logo pensei em mim e na minha família. Vivemos praticamente nas mesmas condições”, diz ela, mãe de duas crianças.

O imóvel tem fiações elétricas precárias e longos salões divididos por folhas de madeira. O prédio servia como sede de uma empresa de tecnologia e, depois de ficar vazio, passou por sucessivas invasões desde 2014.

Moradores admitem que a ligação com a energia elétrica não é oficial, mas dizem lutar para regularizá-la. A conexão é feita por um único fio puxado do outro lado da rua e que, segundo vizinhos, não suporta a demanda de um prédio com ocupação familiar.

“O fio vive pegando fogo, porque não está preparado para esse tanto de gente utilizando eletrodoméstico e luz”, afirma Cláudio Queiroz, 45, comerciante da região.

Uma moradora deste prédio que se apresentou como Andreia comentou a intenção da prefeitura paulistana de fiscalizar os prédios ocupados.

“Se tiver algo fora do padrão, a culpa é dos próprios governantes que não dão uma resposta para a falta de moradia na cidade”, afirma. Segundo a prefeitura, o déficit habitacional na capital é de 358 mil unidades habitacionais.

A maioria dos imóveis invadidos é gerenciada por uma das dezenas de siglas que representam movimentos de moradia. Entre os mais conhecidos estão a FLM (Frente de Luta por Moradia), o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) e a UMM (União dos Movimentos de Moradia).

Mas há também grupos menores —como o LMD (Luta por Moradia Digna), do prédio que desabou— e aqueles que se dizem independentes de qualquer organização formal.

A diversidade entre os grupos se reflete tanto nas estratégias de invasão como na capacidade de manter os imóveis. Há aqueles que cobram aluguel —ou taxas de contribuição, como é mais chamado. Os preços variam de um imóvel para outro, assim como a qualidade da manutenção das áreas e a instalação dos itens de segurança.

Segundo Cida Dias, uma das líderes de uma invasão na rua Benjamin Constant, as contribuições são voltadas para melhorias e obras de zeladoria.

Visitado pela Folha, o imóvel tinha bom aspecto, embora um morador tenha revelado preocupação com os botijões de gás dos vizinhos e a ausência de extintores.

Para Katia Pessoa, ex-moradora de invasão na rua Sete de Abril, as contribuições podem ser benéficas aos moradores, mas há casos de abuso. “A cobrança [na ocupação em que vivia] subiu para R$ 600 por mês. Isso não é movimento por moradia. É pensão.”

Para o professor Paulo Helene, titular da Escola Politécnica da USP e especialista em patologias das construções, os riscos a que estão submetidos moradores de prédios antigos invadidos são imensos.

“Felizmente, temos tido até poucas tragédias e acidentes, pois os riscos são enormes. Prédios são estruturas, grosso modo, como seres humanos, que adoecem, envelhecem e precisam de cuidados.” 

O estado tem se omitido, diz. “É lamentável haver ocupação irregular. Mas há uma questão humanitária e técnica urgente a ser encarada.”

Colaboraram Joana Cunha e Paulo Gomes​

 
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