Na rua do Carmo, ao lado da praça da Sé, centro de São Paulo, o guardador de motos Wanderson Bispo, 19, ficou intrigado com os pedestres que passaram a parar na calçada e a observar o edifício invadido onde ele mora.
“Até ontem ninguém via esse prédio. Agora, todo mundo para e fica olhando”, afirma.
Wanderson se refere ao súbito interesse gerado pela segurança de prédios invadidos por sem-teto depois do incêndio seguido de desabamento de um edifício de 24 andares no largo do Paissandu, na madrugada de terça-feira (1º).
O endereço onde vive Wanderson é um esqueleto de um prédio particular —também com 24 andares— que ficou no meio do caminho entre a construção e a sua ruína. Se tivesse sido concluído, deveria ser um edifício-garagem.
Onde existem, as paredes são de tijolos expostos que não chegam a fechar completamente um andar. As pilastras estão tão desgastadas que deixam aparecer as vigas de metal que as sustentam.
Tábuas e pedaços de madeira completam a fachada, e as escadas entre os andares também são de madeira —material combustível em incêndios.
“Eu tenho medo. Mas agora no tempo seco esse prédio não cai. O perigo é quando começa a chover e caem alguns pedaços da laje”, diz Wanderson.
O prédio é só um dos 70 invadidos que deverão ser vistoriados por uma força-tarefa anunciada pelo prefeito Bruno Covas (PSDB) após a queda do edifício ocupado por sem-teto do largo do Paissandu.
O pente fino deve começar na segunda (7) e durar 45 dias, podendo levar a interdições. “Agora é verificar, a partir do levantamento do nível de criticidade, se é o caso de pedir alguma medida judicial, de fazer alguma intervenção. Vamos avaliar caso a caso”, afirmou Covas.
Nesta quarta-feira (2), os bombeiros mantinham os trabalhos nos escombros em busca de vítimas ou sobreviventes da queda do prédio no dia anterior —havia pelo menos quatro pessoas desaparecidas.
O desabamento foi classificado pelo governador Márcio França (PSB) como “tragédia anunciada”. A situação precária do imóvel já havia sido denunciada por vizinhos —e confirmada por vistoria dos bombeiros em 2015. Mas ele não foi interditado.
O Ministério Público Federal também disse que já havia recomendado à Superintendência do Patrimônio da União, em novembro de 2017, a reforma estrutural do prédio, apontando precário estado de preservação, a “quase total ausência” de sistemas de proteção contra incêndio e bloqueio de rotas de fuga. O órgão instaurou procedimento para apurar as responsabilidades pelo desastre.
O secretário da Segurança Pública, Mágino Alves, diz que a principal hipótese é de que o fogo tenha começado por acidente doméstico —não se sabe se vazamento de gás ou explosão de panela de pressão.
A 2 km do prédio da rua do Carmo, próximo à universidade Mackenzie, quem vive em uma invasão na rua Cesário Mota Júnior e se preocupa com a segurança é a cabeleireira angolana Maria (nome fictício).
“Quando vi o que aconteceu com aquele prédio, logo pensei em mim e na minha família. Vivemos praticamente nas mesmas condições”, diz ela, mãe de duas crianças.
O imóvel tem fiações elétricas precárias e longos salões divididos por folhas de madeira. O prédio servia como sede de uma empresa de tecnologia e, depois de ficar vazio, passou por sucessivas invasões desde 2014.
Moradores admitem que a ligação com a energia elétrica não é oficial, mas dizem lutar para regularizá-la. A conexão é feita por um único fio puxado do outro lado da rua e que, segundo vizinhos, não suporta a demanda de um prédio com ocupação familiar.
“O fio vive pegando fogo, porque não está preparado para esse tanto de gente utilizando eletrodoméstico e luz”, afirma Cláudio Queiroz, 45, comerciante da região.
Uma moradora deste prédio que se apresentou como Andreia comentou a intenção da prefeitura paulistana de fiscalizar os prédios ocupados.
“Se tiver algo fora do padrão, a culpa é dos próprios governantes que não dão uma resposta para a falta de moradia na cidade”, afirma. Segundo a prefeitura, o déficit habitacional na capital é de 358 mil unidades habitacionais.
A maioria dos imóveis invadidos é gerenciada por uma das dezenas de siglas que representam movimentos de moradia. Entre os mais conhecidos estão a FLM (Frente de Luta por Moradia), o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) e a UMM (União dos Movimentos de Moradia).
Mas há também grupos menores —como o LMD (Luta por Moradia Digna), do prédio que desabou— e aqueles que se dizem independentes de qualquer organização formal.
A diversidade entre os grupos se reflete tanto nas estratégias de invasão como na capacidade de manter os imóveis. Há aqueles que cobram aluguel —ou taxas de contribuição, como é mais chamado. Os preços variam de um imóvel para outro, assim como a qualidade da manutenção das áreas e a instalação dos itens de segurança.
Segundo Cida Dias, uma das líderes de uma invasão na rua Benjamin Constant, as contribuições são voltadas para melhorias e obras de zeladoria.
Visitado pela Folha, o imóvel tinha bom aspecto, embora um morador tenha revelado preocupação com os botijões de gás dos vizinhos e a ausência de extintores.
Para Katia Pessoa, ex-moradora de invasão na rua Sete de Abril, as contribuições podem ser benéficas aos moradores, mas há casos de abuso. “A cobrança [na ocupação em que vivia] subiu para R$ 600 por mês. Isso não é movimento por moradia. É pensão.”
Para o professor Paulo Helene, titular da Escola Politécnica da USP e especialista em patologias das construções, os riscos a que estão submetidos moradores de prédios antigos invadidos são imensos.
“Felizmente, temos tido até poucas tragédias e acidentes, pois os riscos são enormes. Prédios são estruturas, grosso modo, como seres humanos, que adoecem, envelhecem e precisam de cuidados.”
O estado tem se omitido, diz. “É lamentável haver ocupação irregular. Mas há uma questão humanitária e técnica urgente a ser encarada.”
Colaboraram Joana Cunha e Paulo Gomes
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