Projeto de artistas leva adolescentes da Fundação Casa a 'viagem sonora'

Com diferentes sons, músicos tentam tirar jovens da realidade da detenção

Thiago Amâncio
São Paulo

“A gente vai convidar vocês para uma viagem. Tem um ônibus esperando lá fora. Para onde vocês querem ir?”, pergunta o músico Bruno Garibaldi a uma plateia de meninas adolescentes.

“Praia”, “Havaí”, “Paris”, “Europa”, “Nova York”, respondem, umas sobre as outras.

“Minha casa”, diz outra.

As meninas vestem camiseta e meias brancas, calça lilás e chinelos azuis. As roupas têm uma numeração amarela. 

Elas estão numa sala ampla, com as paredes pintadas em amarelo e branco, onde estão colados desenhos feitos por elas. Há também um aviso que diz que é falta disciplinar trocar ou doar refeições depois de recebê-las e participar de jogos de azar. 

São internas da Fundação Casa, onde crianças e jovens de 12 a 21 anos cumprem medidas socioeducativas. Elas vivem no centro feminino Chiquinha Gonzaga, que abriga 107 meninas e três bebês (filhos delas), a maior parte detida por tráfico e roubo.

É lá que se encontram com os músicos Bruno Garibaldi e Luisa Puterman. Os artistas desenvolveram uma espécie de “viagem sonora”: vendam o público e, com sons, tentam promover sensações que tirem do lugar pessoas que estão presas de alguma maneira.

Tudo começou, conta Garibaldi, 31, num projeto artístico em Pedra Azul, município mineiro que faz divisa com a Bahia, em que precisavam desenvolver alguma ação com crianças. “No dia da atividade, numa conversa de café da manhã, a gente se perguntou: ‘O que fazer?’ Eu falei brincando, ‘ah, vamos pegar essas crianças, botar num barco e vamos para a África’. A Luísa olhou séria para mim e falou: ‘Isso é bom’”, lembra.

Com sons de tempestade, água, golfinhos etc., tentaram compor um ambiente de uma viagem marítima. A diferença é que o público era formado por crianças do sertão, que nunca tinham visto o mar. “Foi um sucesso, elas adoraram.”

Dois dias depois, a surpresa: receberam um convite para repetir a experiência no presídio da cidade. Com 50 presos, no pátio da penitenciária, fizeram um “sobrevoo sonoro”.

“Depois que terminou a experiência, os presos começaram a levantar e trazer coisas que eles produzem lá, como tapetes e bonecos, e nos presentearam. Eles agradeceram porque a gente tinha tirado eles de lá de alguma forma.”

Desde então, já repetiram a experiência em escolas, clínicas de reabilitação química e hospitais. Nos próximos meses, repetirão as performances em uma prisão, uma escola para deficientes visuais e até uma ldeia indígena.

Em uma sexta-feira de abril, levaram dezenas de jovens na Fundação Casa a uma “viagem” de barco à África. 

Poderia ser um ambiente escolar como qualquer outro: as adolescentes brincam umas com as outras, riem, tiram sarro e se ajudam. A diferença é que, para chegar a essa sala, que fica no térreo, precisam passar por portas de ferro e grades.

Quase todas deitam com a barriga para cima ou de lado, em posição fetal. Os artistas pilotam a viagem de uma esteira de palha, com computador, mesa de som, microfone e teclado. Antes de começar, pedem que as meninas imaginem que vão passar em casa para buscar o que for mais importante. Roupa, comida, celular, dizem elas, depois, sobre o que pegaram. Uma responde: “Minha mãe”.

“Nossa imaginação é muito poderosa para ficar presa dentro de uma sala. Abra os braços, sinta a brisa do mar. Tá sentindo o vento?”, questiona Garibaldi. Algumas meninas demoram a entrar no jogo e até tiram a venda. Com o tempo, se entregam.

No meio do périplo, enfrentam uma tempestade. “Comecei a sentir muito frio”, diz, depois, uma das meninas. 

“Eu precisava de um abraço para me esquentar, da minha mãe. Senti que ela estava perto de mim”, conta ela, que, antes de ser detida por tráfico e falsificação na Fundação Casa, há quatro meses, tocava instrumentos de sopro como trompete e flugelhorn.

A família é de Campo Grande e eles se falam só por telefone, a cada 15 dias. “O presente que eu dei para ela foi a cadeia, estar longe, sem visita, sem nada”, lamenta. Ela cita o artigo 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz que todo ser humano tem direito à liberdade.

A viagem se encerra quando chegam à África, onde são recebidas com uma festa. “Foi difícil voltar. Eu queria ficar. Eu queria dançar”, resume uma adolescente, depois. 

Finda a performance, as meninas explicam em uma palavra o que sentiram. “Frio”, “paz”, “sonho”, “fé”, “sossego”, “mó brisa”. As mais repetidas são “saudade” e “liberdade”.

“Eu me senti na minha casa, que é o lugar que eu mais quero estar”, conta outra adolescente, que sonha em abrir uma barbearia quando deixar o local. “[Esse tipo de ação] traz uma tranquilidade que a gente não é acostumada a sentir aqui. [O predominante é] sentimento de tristeza. Olho para o céu, queria estar olhando da minha casa, sentada na varanda”, conta.

A ideia é “botá-las para explorarem o mundo, os desafios, a curiosidade, o medo. Para que isso sirva de energia para elas cruzarem os desafios da vida, cruzarem os horizontes, que às vezes parecem estar distantes, mas podem estar bem perto”, resume Garibaldi.

“Imaginar é um ato de liberdade. E fazê-las se conectarem com o imaginário delas, o lado subjetivo, faz elas de certa forma se conectarem com a realidade delas”, completa.

Quem levou o Projeto Sonora à Fundação Casa foi a ONG Instituto Mundo Aflora, que leva projetos do tipo a adolescentes que cumprem medidas socioeducativas.

“Tem muito potencial aqui dentro, essas meninas são incríveis. Se a gente não oferecer outros tipos de oportunidades, quem oferece é o crime, e elas saem daqui para o sistema prisional”, afirma Renata Mendes, que toca o projeto e dá aulas de ioga às adolescentes.

Meninas são exceções entre os internos das Fundação Casa, vinculada à Secretaria de Justiça do Estado. Dos 8.808 jovens em 145 centros de São Paulo, só 4% são mulheres.

A maior parte cumpre medida socioeducativa por tráfico (46% do total). Roubos ocupam a segunda posição: são 41% dos casos. Em todo o estado, 101 adolescentes estão detidos por homicídio doloso qualificado, 76 por latrocínio (roubo seguido de morte) e outros 76 por estupro.

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