Um deficiente ou criança é estuprado por hora em São Paulo

Menores de 14 anos, que são metade das vítimas na capital, precisam de cuidado especial

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São Paulo

Vulnerável, segundo a lei, quer dizer menor de 14 anos ou incapaz de reagir. Segundo o senso comum, quer dizer frágil, quebrável.

Clara (nome fictício) foi uma das que, aos 12 anos, se quebrou. 

Sua inocência foi quebrada naquela tarde de férias, quando teve sua toalha arrancada e seus peitos e vagina tocados ao sair do banho.

Sua coragem foi quebrada quando tentou gritar, mas foi silenciada por “ser muito careta e não querer fazer o que todo mundo na idade dela fazia”.

Depois, ela quebrou o medo, ao decidir relatar aos pais o que seu irmão fizera com ela diariamente durante três anos.

Mas, por muito tempo, antes de seus atuais 22 anos, ela não conseguiu quebrar a depressão, o pânico, a insegurança e a raiva.

Ao fundo, menina com o rosto escondido atrás de roupas, penduradas num varal. Em primeiro plano, um gato olha em direção a ela.
Clara (nome fictício), 22, sofreu abusos do irmão diariamente por três anos quando era criança - Marlene Bergamo/Folhapress

Tais sentimentos são comuns entre vítimas de estupro consideradas vulneráveis —além das menores de 14 anos, pessoas que não podem oferecer resistência por deficiência mental, doença ou outra causa, como embriaguez.

Elas representam 68% do total de vítimas desse crime no estado de São Paulo, com quase um caso por hora. O levantamento é do Instituto Sou da Paz, a partir de dados de 2017 da Secretaria da Segurança Pública. Não é possível fazer comparações com anos anteriores, porque o estado só passou a especificar os estupros de vulneráveis nos registros em setembro de 2016, por lei.

Para Ana Carolina Pekny, uma das pesquisadoras, além de as crianças serem mais suscetíveis ao crime, a procura pela polícia pode ser maior. “Nesses casos é um adulto que percebe e denuncia. Já a vítima mulher vai ter que fazer isso sozinha, muitas vezes constrangida”, diz.

O estudo, que analisou quase 2.500 boletins de ocorrência na capital, reforça o que dados da saúde, por exemplo, já mostravam sobre essas vítimas: predominam crianças (47% têm até 13 anos) e meninas. Na maior parte dos casos, os agressores são membros da família e os abusos ocorrem dentro de casa.

No caso de Clara, os estupros só pararam porque seus pais deram uma chave para que ela trancasse o quarto. O irmão levou uma bronca e ficou sem carro por um mês. Ela fez terapia por anos, o que permite que ela fale sobre isso hoje, mas não sem a voz embargada e algumas lágrimas.

Foi diferente com Joyce Dias, 20, que contou sua história pela primeira vez para esta reportagem. “Me calei e me calo até hoje, e aquilo me corrói.”

O que a corrói é a lembrança do dia em que seu melhor amigo da escola apareceu em sua casa, abaixou as calças e disse: “Mama, sua vagabunda”. Aos sussurros de “fraca, fraca, fraca”, ela fez o que ele pediu forçadamente. Depois, vomitou por quatro dias. “Ele me fez um mal irreparável.”

O psicólogo Antonio Rivaldo de Lima, do Instituto Sedes, explica esse mal irreparável com uma comparação. “Imagine que alguém jogue uma gota d’água em uma daquelas fileiras de formigas. É a mesma coisa. A criança está seguindo seu curso normal e vem alguém e interrompe.”

O principal sinal de que essa ruptura aconteceu, diz, é a vítima desenvolver um comportamento sexualizado não condizente com a idade —além de depressão ou queda do rendimento escolar, por exemplo (veja mais indícios ao final).

“Esse conhecimento chegou até essas crianças antes de elas estarem preparadas, o que as deixa confusas. Na maioria dos casos é por alguém que ela ama, mas ela sabe que está acontecendo algo estranho.”

Era exatamente isso que Carol (nome fictício), 20, sentia aos 12 anos quando seu padrasto encostava o pênis em sua perna debaixo da coberta enquanto eles assistiam filmes juntos, ou quando ele se masturbava no banho com a porta entreaberta. “Eu sabia que era errado, mas não tinha medo. Eu ficava curiosa”, conta.

É por isso que o cuidado com as crianças vítimas de abuso deve ser especializado. O atendimento exige diferentes braços: médico, psicólogo, assistente social, policial, promotor.

“É diferente de outras violências. No sistema de saúde, ela tem que ser tratada num espaço reservado, sem pessoas vindo falar ‘coitadinha’”, diz a pediatra Renata Waksman, que coordena o núcleo de estudos da violência contra crianças na Sociedade de Pediatria de SP.

“O médico não pode julgar, fazer careta ou perguntar muito. A escuta tem que ser acolhedora e o exame, bem registrado, para ser usado pelo juiz depois. Não pode ser um novo trauma.”

Uma lei federal aprovada no ano passado, ainda em fase de implementação, avança nesse ponto. Prevê escuta e atendimento especializados a jovens vítimas ou testemunhas de violência nas diferentes esferas (saúde, segurança, Justiça e assistência social).

Para a promotora Fabíola Sucasas, do Ministério Público de SP, a lei criará um sistema amplo de proteção, mas ainda é preciso efetivamente “colocar a colher” na casa das pessoas, como fez a Lei Maria da Penha. “Precisamos trabalhar em pesquisas, ouvir mais as crianças, entender a dinâmica desse crime, treinar e aparelhar o Estado e dar mais celeridade aos processos.”

A pena para estupro de vulnerável vai de 8 a 15 anos. O crime só prescreve 20 anos depois que a vítima atinge a maioridade, assim, é possível denunciar até os 38 anos de idade.

Clara já pensou em fazer isso contra o irmão, mas não quer reviver tudo de novo. Prefere tentar “transformar sua dor em alguma coisa boa”. Por isso decidiu contar sua história. “Quero evitar que alguma menina passe por isso também. Imagina? Seria meu sonho.”

 

Como identificar e parar o abuso sexual

Possíveis sinais em crianças e adolescentes

  • Comportamento sexual inadequado

  • Mudanças de comportamento, como agressividade, ansiedade, vergonha ou pânico, principalmente em relação a uma pessoa ou local

  • Mudanças de hábito, como sono, falta de concentração e aparência descuidada

  • Queda na frequência ou rendimento escolar

  • Problemas causados por estresse, como dor de cabeça, vômitos e dificuldades digestivas

  • Proximidade excessiva de parentes ou conhecidos à criança

  • Silêncio diante de segredos mantidos com pessoas mais velhas

  • Baixa autoestima, depressão, automutilação ou tentativa de suicídio

  • Marcas de agressão, sangue ou corrimento na calcinha, doenças sexualmente transmissíveis ou gravidez

O que fazer se notar sinais

  • Explique à criança que ela não deve manter segredos com pessoas mais velhas

  • Interrompa o contato entre ela e o possível abusador

  • Ouça e acolha a criança, não questione seu relato

  • Mostre empatia, mas não pânico ou espanto; isso pode assustá-la ainda mais

  • Leve-a a uma avaliação e tratamento especializados

  • Denuncie

Quem procurar

  • Disque 100 (encaminha o caso a órgãos competentes em 24 horas)

  • Centros de Referência de Assistência Social (Cras ou Creas)

  • Instituto Sedes e outras clínicas conveniadas com a Prefeitura de SP, que integram o serviço de proteção à criança e ao adolescente (SPSCAVV)

  • Serviços de saúde, como UBSs e até pronto-atendimento

  • Delegacias especializadas (da mulher ou da infância e juventude)

  • Conselho Tutelar

  • Ministério Público

Fontes: Childhood Brasil, Abrinq e especialistas

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