Descrição de chapéu tragédia dos sem-teto

Após morte de bebê, pai aponta recusa de socorro de PMs em acampamento

Casal que vivia em prédio que desabou perdeu criança em parto no Paissandu

Thiago Amâncio
São Paulo

Rafael Alves, 32, e Jackeline Moraes, 25, perderam a casa duas vezes em 36 dias. Em 1º de maio, o prédio em que viviam, o Wilton Paes de Almeida, desmoronou após ser consumido por chamas, no centro de SP.

Nesta quarta (6), caiu também a barraca em que moravam desde o incêndio, no largo do Paissandu, com dezenas de outros desabrigados. A moradia provisória precisou ser rasgada para que Rafael começasse a fazer o parto da esposa, a princípio sem socorro médico nem instrução.

Raphaelly Victoria, após 29 semanas de gestação, nasceu morta na ambulância a caminho do hospital.

Homem exibe no celular foto abraçado com mulher
Rafael Alves mostra foto com a esposa, Jackeline da Silva Moraes; eles vivem no largo do Paissandu e perderam a filha Raphaelly Victoria - Thiago Amâncio/Folhapress

A situação no acampamento é precária. Não há banheiros públicos por perto, e as mães enfrentam uma peregrinação pelos bares do entorno quando as crianças ficam apertadas. Na hora do banho, as mães também recorrem a outros prédios ocupados no entorno. 

No começo da tarde desta quinta-feira (7), o pai andava de um lado para o outro no acampamento do Paissandu, ainda sem dormir desde o dia anterior, recebendo abraços de moradores e voluntários, agitado, intercalando momentos de descontração, cansaço, raiva e choro.

Ele responsabiliza o poder público pela morte de Raphaelly Victoria, sua primeira filha: tanto pela condição precária em que vive na praça quanto pela falta de socorro quando precisou --ele afirma que policiais militares de uma base próxima se recusaram a ajudar e chamaram uma outra viatura. “Descaso em cima de descaso”, resume.

“Um filme de terror, mas infelizmente não é ficção, é realidade. Sem casa, sem moradia, sem filho, sem meus direitos, todos meus direitos violados. Dava para pegar a Constituição e rasgar, porque não está sendo cumprido nada. Só queria minha casa, que é um direito [garantido] na Constituição”, desabafa.

“Quando chegou no hospital eu vi uma criança feita, formada, sem vida. Por quê? Omissão de atendimento, omissão de atenção. E eu pergunto: está certo? Tem como a gente viver nessa situação? Várias pessoas com dificuldade de locomoção, crianças com menos de seis meses. Não estou falando só da minha filha. Tem mais um monte de criança aqui que precisa ser atendida. Vai esperar morrer mais uma aqui dentro? Aqui é lugar público, somos todos pessoas da sociedade que não têm atenção.”

Para o Frei Agostino, da Pastoral do Povo da Rua, que acompanha os moradores do largo desde o incêndio, a tragédia está associada a "uma omissão por parte do estado" que os deixou naquelas condições. "A prefeitura diz que toda assistência foi dada, mas é fácil culpar a vítima, é o caminho natural. É uma pena", diz.

O casal está junto há quatro anos e meio, desde que Rafael foi morar no prédio, após viver na rua. No celular, exibe fotos do casal e do dia em que, vestido de terno, entregou uma aliança à esposa. É descrito por amigos como apaixonado e extremamente cuidadoso com a família. No Wilton Paes de Almeida, viviam numa casa simples, com TV, cama, armário, geladeira e fogão.

Ele conta que dormiam na casa da mãe de Jackeline quando receberam a notícia do incêndio no prédio. Perderam um gato e um cachorro na tragédia, além da casa.

Descobriram há poucas semanas o sexo do bebê. Raphaelly é em homenagem ao pai. Victoria, referência à nova vida que levariam após a tragédia. A gravidez tinha acompanhamento médico regular, diz uma moradora do acampamento.

Na tarde desta quarta, Rafael se sentiu enjoado, relata um amigo, e dormiu após tomar um remédio. Quando acordou, a esposa disse que se sentia estranha. As contrações começaram às 17h30, segundo o pai. 

Ele conta que os moradores do acampamento pediram ajuda em uma base da Polícia Militar, mas os agentes se recusaram a sair do local e acionaram uma viatura, que chegou às 18h10 (A PM diz que a população pediu ajuda na base depois que a polícia já estava a caminho). A essa hora, os pés e parte do abdômen da criança já saíam --o bebê estava na posição inversa a que deveria estar, com a cabeça para baixo. Um médico que passava pelo local se voluntariou para ajudar até a chegada do resgate do Samu, às 18h40.

O parto foi finalizado na ambulância, que seguia em direção à Santa Casa. Mas a menina já nasceu morta, segundo consta no boletim da ocorrência policial.

O ginecologista e obstetra Jefferson Drezett diz que "o tempo é sempre fundamental nesses casos" e que a demora no socorro pode fazer diferença. O médico ressalva que não analisou o caso de Raphaelly, mas que, numa situação genérica de parto pélvico (quando o bebê está sentado), "a maioria dos obstetras optariam por uma cesária. Eu já fiz partos pélvicos, mas sempre em hospital, com pediatra. Fora de um hospital é claro que pode ter um desfecho diferente", afirma.

Jackeline, depois de socorrida, só pedia desculpas. “Fica assim não, não foi porque você quis, isso acontece, eu te amo de qualquer jeito. Se for o caso nós vamos ter uns dez neguinhos”, respondeu Rafael a ela, segundo relatou. 

Ela passou por um processo de curetagem e teve alta no começo da tarde desta quinta. Agora, o casal descansa na casa de um amigo.

Nesta quinta, o prefeito Bruno Covas (PSDB) afirmou que a gestante havia sido cadastrada pela prefeitura para receber auxílio-aluguel, no entanto, o poder público não pode obrigar ninguém a sair do largo em que o acampamento foi montado.

O secretário em exercício da Assistência Social, José Castro, diz que “falar em abandono não é justo”. “Desde o primeiro dia foi feito um trabalho incansável, contínuo e insistente para que as pessoas aceitassem acolhimento na rede socioassistencial”, diz ele.

Segundo Castro, os moradores exigiram que o abrigo oferecido fosse próximo ao largo do Paissandu, que não misturasse as famílias vítimas da tragédia com outros públicos e que não os tirasse da fila da habitação, o que foi atendido. O abrigo Pedroso, diz, tem espaço para 150 famílias, mas média de ocupação de 60 pessoas.

A prefeitura diz que notificou o Ministério Público sobre as condições das pessoas na praça, mas que “a legislação não permite que essas pessoas sejam obrigadas pela Prefeitura a aceitar o abrigamento oferecido.”

O Ministério Público diz que nos autos da ação civil promovida pela Promotoria, "a prefeitura nada informou sobre mulheres grávidas, e ainda não prestou informações sobre o assunto. E nas promotorias as informações prestadas foram precárias".

A gestão diz que a maioria dos acampados no largo não são do edifício que desabou e que tenta “mediar a saída voluntária dessas pessoas, atraídas pelas doações feitas no local e pela expectativa de que sua presença no largo gere atendimento habitacional.”

Segundo a administração, 300 famílias que não constavam em cadastro feito em março se apresentaram como vítimas do acidente para receber auxílio moradia. Destas, após avaliação, 67 famílias tiveram parecer favorável e começaram a receber o auxílio nesta quinta (7).

A Secretaria de Segurança Pública, do governo Márcio França (PSB), diz que os moradores pediram ajuda à base da PM só às 18h22, depois que viaturas já tinham sido acionadas e estavam chegando ao local.

A Defensoria Pública de SP diz que lamenta a morte e vai investigar as circunstâncias. O órgão lembra que ajuizou ação com a Defensoria Pública da União em 21 de maio na Justiça Federal pedindo atendimento emergencial às vítimas, e que um dos argumentos da ação era a existência de grávidas no local. A Justiça atendeu o pedido em relação a banheiros químicos. A defensoria afirma que pediu a reconsideração da liminar. 

CRIANÇAS

Desde o incêndio e queda do prédio de 26 andares, quando sete pessoas morreram e outras 455 ficaram desabrigadas, segue indefinida de quem é a responsabilidade sobre o destino das famílias que se recusam a ir para abrigos da prefeitura e continuam acampadas diante dos escombros.

A Promotoria de Infância de Juventude do estado, por exemplo, a quem cabe acionar o Judiciário para resolver a situação das crianças que vivem em situação precária, demorou quase duas semanas para se manifestar. Quando o fez, na última segunda-feira (14), atribuiu o papel de avaliar o grau de vulnerabilidade das crianças aos conselheiros tutelares que atuam na região. Estes, por sua vez, relatam dificuldades em atuar em meio às famílias, que temem terem os filhos retirados a força pelos agentes.

O resultado disso é um jogo de empurra. As famílias recusam a ir para abrigos enquanto não receberem as primeiras parcelas de R$ 400 do auxílio-aluguel prometido a elas, a serem pagas pelo estado por um ano e depois pela prefeitura, até que recebam uma moradia definitiva. Não há, porém, prazo nem certeza do recebimento da casa.

Em nota nesta sexta-feira (9), a Promotoria informou que, por causa de sua atuação, a Justiça determinou que a prefeitura apresente os relatórios individualizados dos atendimentos realizados às famílias acampadas no Largo do Paissandu desde 1º de maio. "Os documentos deverão ser catalogados por núcleo familiar e trazer indicações das ações e programas ofertados para as famílias com filhos de até 18 anos e, eventualmente, a razão alegada para a recusa, com dados de identificação de registro de nascimento ou de outros documentos pessoais dos assistidos."

Ainda segundo a Promotoria, a liminar foi concedida porque a prefeitura deixou de especificar quem são os ex-moradores da ocupação do edifício que vêm se recusando a levar seus filhos para Centros Temporários de Atendimento (CTAs). "Medidas que afetam o poder familiar são excepcionais, e o acolhimento é medida excepcional e breve. Para isso, é necessário especificar os destinatários dessas medidas."

Entenda aqui o que já se sabe sobre o desabamento de prédio em SP ​  ​

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