Justiça autoriza gestão Covas a cremar 1.600 ossadas não identificadas

Segundo a Prefeitura de SP, os corpos foram exumados entre 1941 e 2000

São Paulo

A gestão Bruno Covas (PSDB) recorreu à Justiça e conseguiu autorização para cremar ossadas de cerca de 1.600 pessoas no cemitério municipal da Quarta Parada, na zona leste da cidade.

A Prefeitura de São Paulo afirma que não há mais espaço no ossário e que as ossadas, não identificadas e não reclamadas pelos familiares, não têm condições para serem um dia identificadas.

Em nota, o serviço funerário municipal disse que o ato não incide em atentado à memória. “É um procedimento regular e já foi feito no cemitério da Quarta Parada em 2005, quando houve a cremação de 2.117 ossos por via judicial.”

A informação sobre a cremação foi divulgada pelo site Jornalistas Livres e confirmada pela Folha. Representantes de movimentos de defesa dos Direitos Humanos revoltaram-se com o pedido da prefeitura e com a autorização dada pela Justiça, que enxergam como uma violação aos familiares das pessoas às quais as ossadas pertencem.

A Prefeitura de São Paulo pretende cremar ossadas provenientes de exumações realizadas entre 1941 e 2000.

Em seu pedido feito em fevereiro, a prefeitura informou à Justiça que a identificação das ossadas se perdeu “em razão das intempéries climáticas ao longo dos anos em que os respectivos ossos estão acondicionados nos ossários gerais”. 

As ossadas ficam em sacos dentro do ossário, uma espécie de depósito com essa finalidade. Cada ossada corresponde a um corpo exumado.

Ainda segundo a administração municipal, a lotação completa do ossário impede o armazenamento de novos despojos provenientes de exumações, prejudicando os procedimentos operacionais, podendo gerar, inclusive, a interdição de terrenos que poderiam ser utilizados para novos sepultamentos.

Para cremar ossadas sem identificação a prefeitura precisa de autorização judicial, tal como definido em provimento de 1993 da Corregedoria do Tribunal de Justiça do estado. 

Em 2017, 1.426 cremações identificadas, com autorização de familiares, foram realizadas na cidade, no crematório da Vila Alpina. 

Para o advogado Pádua Fernandes, que participou das comissões nacional, estadual e municipal da Verdade, a prefeitura incorre em diversas irregularidades ao propor essa cremação. “Os corpos não são da prefeitura. Pelo Código Civil, eles são das famílias. Os corpos estavam identificados e a prefeitura confessa que perdeu as identificações por incúria, por descuido. A prefeitura não tem o direito de se livrar daquilo de que ela descuidou” afirma.

“A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é contra esse tipo de cremação porque nega o direito à informação e o direito à verdade às famílias que estejam procurando pessoas desaparecidas ou com algum outro problema de identificação. Além disso, apaga provas de eventuais crimes”, completa. 

Para Adriano Diogo (PT), ex-deputado estadual que presidiu a Comissão da Verdade do estado, trata-se de “infração a um conceito civilizatório”.

“Em vez da dignidade devida a esses falecidos, de descansarem em ossários bem organizados, o que a prefeitura pretende é incinerar histórias de vida. Os corpos humanos pertencem legalmente a suas famílias e não são lixo para serem descartados”, diz Diogo, responsável pela descoberta do processo que agora corre em segredo de Justiça.

“Na linguagem cristã, o cemitério tem caráter sagrado, por mais que o neoliberalismo tente reduzi-lo a um simples depósito de cadáveres destinados a produzir lucro”, completa.

O Quarta Parada está entre os cemitérios que a gestão tucana quer conceder à iniciativa privada. A prefeitura estuda sugestões recebidas de empresas após abertura de Procedimento de Manifestação de Interesse e ainda não enviou à Câmara projeto relacionado ao tema, o que deve acontecer até o final do ano.

Em tese, a cremação livraria um eventual futuro concessionário do cemitério do acondicionamento e da manutenção das ossadas sem identificação, dando mais rentabilidade ao negócio. A prefeitura nega qualquer vinculação entre a intenção de cremar e o projeto de desestatização.

O Quarta Parada tem área de 183 mil m² e funciona exclusivamente em regime de concessão, ou seja, apenas com o sepultamento de pessoas cujas famílias possuam jazigo. 

Atualmente, o cemitério conta com 18.833 concessões de jazigos. Há aproximadamente 400 mil pessoas sepultadas no local, que em maio recebeu 5.000 visitantes.

Diogo e Pádua Fernandes se organizam para reverter a autorização concedida pela juíza Renata Pinto Lima Zanetta. Eles estudam fazer uma ação rescisória ou envolver o Ministério Público Federal, dado que podem existir ossadas de desaparecidos da ditadura militar no local.

De acordo com o serviço funerário municipal, “a cremação não tem qualquer relação com a concessão dos cemitérios. Ela é necessária para proteção ao meio ambiente, além de garantir mais espaço para novos sepultamentos.”

A nota acrescenta que o Quarta Parada não permite o sepultamento de pessoas não identificadas no local, e que as ossadas em questão decorrem de “devoluções de concessão ao serviço funerário municipal e objeto de comisso, quando os túmulos são abandonados”. 

“Depois de exumados, os ossos foram encaminhados ao ossário geral, mas perderam identificação devido ao tempo. Atualmente, isso não ocorre, pois o material é diferente e mais durável.”

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