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Ônibus provoca medo 2 anos após tragédia na Mogi-Bertioga

Estudantes dizem que nada mudou no transporte pago pela prefeitura

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Ônibus da União do Litoral logo após o acidente, em 2016 - José Patricio - 09.jun.2016/Folhapress
São Paulo

Dois anos foram suficientes para Jario plantar e ver florescer, mais de uma vez, azaleias, hortênsias, gardênias e margaridas no túmulo de seu filho, Guilherme de Oliveira. Mas não para ver alguém ser responsabilizado pelo acidente que matou o jovem, assim como outras 17 pessoas em 8 de junho de 2016, quando um ônibus com estudantes tombou na Mogi-Bertioga.

O esmero com o jardim, explica Jario, é uma forma de seguir cuidando do filho. Ele e a esposa vão toda semana ao cemitério, a duas horas da sua casa, em São Sebastião (SP). Além das flores, o tempo fez crescer a raiva do pai. "Cada dia dói mais, é revoltante", diz o zelador Jario de Oliveira, 45. 

Em 2016, o resultado da perícia apontou falha nos freios e falta de manutenção. O ônibus, da União do Litoral, era fretado pela Prefeitura de São Sebastião para fazer o trajeto da cidade do litoral norte até a Universidade de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo.

A dona da empresa, Daniela de Carvalho Soares Figueiredo, e os funcionários Adriano André do Vale e Fernando Antônio Resende são acusados "de matar culposamente, agindo com negligência, 18 pessoas e ferir outras 12", segundo o Tribunal de Justiça de SP. O motorista morreu no acidente.

Para o promotor de Bertioga, Diogo Pacini, não há lentidão no processo, que está em fase de oitivas de testemunhas. "O feito é bastante complexo e são muitas pessoas a serem ouvidas", afirma. 

Enquanto isso, Jario e sua esposa fazem tratamento psiquiátrico e vivem "à base de remédios". "Choramos dia e noite", diz. A esposa está com depressão e quase não sai do quarto. 

Primeiro da família a fazer faculdade, Guilherme tinha 19 anos e cursava design gráfico. Quando Jario via o ônibus da empresa, ficava orgulhoso. "Pensava: 'meu filho está indo para a faculdade'. Hoje tenho raiva. Foi negligência." 

Jario pediu uma indenização na Justiça e, segundo ele, não recebeu nada até agora. Ainda que o processo seja doloroso, ele não pensa em desistir. "Dinheiro pra mim não importa, nasci pobre e vou morrer pobre. Mas, por Justiça, quero mexer no bolso deles", diz. 

Jario diz que a empresa nunca ligou para ele após o acidente. "E os ônibus continuam quebrando." A falta de segurança dos veículos é apontada por muitos sobreviventes como motivo de frustração. 

É o caso do estudante de engenharia Felipe Ferreira da Silva, 19, que passou 32 dias internado, dez em coma. 

Recuperado, Felipe se mudou para Mogi para evitar pegar o ônibus todos os dias. Para os pais, uma doméstica e um pedreiro, os R$ 550 de aluguel pesam no bolso. Hoje Felipe usa o ônibus para visitar a família nos fins de semana. 

"Ainda tem cinto com problema, os ônibus são os mesmos. Não vi nenhuma melhoria", diz. Felipe aceitou um acordo com a empresa e vai receber R$ 21 mil, já descontadas as taxas do advogado. "Foi um valor baixo, mas preferi colocar um ponto final nisso". 

Outro sobrevivente, o estudante de engenharia Erick Pedralli, 23, também se mudou para Mogi, mas usa o fretado nos finais de semana. "Continua quebrando, já fiquei parado na serra depois do acidente. Não mudou nada." 

Na época, Erick ficou 22 dias internado, alguns em coma, com edema cerebral. Seu pulmão foi perfurado, e uma orelha, costurada. Levou nove pontos no joelho e perdeu um dos dedos da mão direita. "Fiquei meio doidinho. Tenho esquecimentos, falta de atenção, às vezes faço comentários fora de contexto. Eu mesmo noto: 'que merda eu falei?'". 

Erick fica envergonhado do que chama de "panes". As marcas no corpo também incomodam o rapaz. "Costumava esconder a minha mão. Hoje não tenho mais vergonha", disse, sem perceber que mantinha a mão coberta por um gorro. 

Como Jario, Erick não recebeu indenização. "Nem mesmo um telefonema", diz ele, cuja mãe é cabeleireira e o pai, caminhoneiro. Erick paga o aluguel com o salário do estágio. 

Outros sobreviventes trancaram a faculdade por problemas psicológicos. É o caso da estudante de engenharia Gabriela Leite, 20, que perdeu amigos, além do namorado. Ela teve afundamento do crânio, ficou em coma e passou por cirurgia no cérebro. 

Recuperada, voltou para a universidade, mas passou a ter crises de ansiedade e trancou o curso. A jovem não quis conversar com a reportagem. "Ela não fala do acidente. Ela se fechou", lamenta o pai, Gilberto Bras, 47. 

Segundo ele, Gabriela ficava nervosa com o trajeto de ônibus. Morar em Mogi também não resolveu. Ela tinha crises, às vezes semanais, e os pais precisavam buscá-la. "Ela sente falta de ar, dor no peito e fica paralisada. Já fomos em vários psicólogos." 

Ele fez um acordo com a empresa. "Recebemos R$ 50 mil, mas já foi quase tudo no tratamento. Só aceitei para evitar mais desgaste para a Gabi". 

Em 2016, cinco familiares ou vítimas assinaram um TAC (termo de ajuste de conduta), feito entre a empresa e a Defensoria Pública do Estado de SP. 

Para o advogado José Beraldo, que defende algumas das vítimas, o valor foi baixo, "um absurdo". A defensoria afirma que os valores são confidenciais e seguem a jurisprudência. 

Por meio de nota, a União do Litoral disse que se defende na Justiça "da alegação de falta de manutenção dos freios". 

Afirma que realizou, nos últimos anos, diversos acordos com as vítimas. "Não consta na empresa reclamações de alunos a respeito das condições ou qualidade dos serviços", afirmou, sobre os ônibus. 

A empresa disse que, em 25 anos de operação, não se envolveu em outros acidentes com morte de passageiros e que investe em segurança. Procurada, a Prefeitura de São Sebastião não se manifestou.

Na sexta-feira (8), pais e amigos das vítimas inauguraram um memorial, em uma igreja. Jario, que organizou a homenagem, diz que a placa colocada em 2017, no local do acidente, foi roubada. 

Assim como mantém o jardim no cemitério, Jario não descuidou. Mandou fazer uma placa nova, de acrílico: "Não pode ficar no esquecimento". 

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