Clínicas com consultas de R$ 20 miram de torcida de futebol a bairro rico

Fuga de planos de saúde impulsiona mercado alternativo

Angela Pinho
São Paulo

Diante do encolhimento dos planos de saúde devido à crise econômica e da farta mão de obra médica à disposição, as chamadas clínicas populares, que oferecem consultas a partir de R$ 20, proliferam-se pelo país.

Flávia Baptista, 43, faz fisioterapia em clínica; setor cresceu com fuga de planos e insatisfação com o SUS - Eduardo Anizelli/Folhapress

Em um cenário de competição acirrada, esses estabelecimentos recorrem a estratégias que incluem convênio com torcida organizada de futebol, patrocínio a times de várzea e propaganda com celebridades como a cantora Gretchen.

Eles também permitem parcelamento e até desconto em conta de luz e ofertam um leque variado de opções, como atendimentos de 15 minutos e oferta de médico de família.

Em comum está o público. Ele, em regra, é composto em parte por clientes insatisfeitos com o SUS (Sistema Único de Saúde) e em parte por pessoas que perderam o convênio médico nos últimos anos —caso de cerca de 3 milhões de brasileiros desde 2014.

A fuga dos planos de saúde, além de impulsionar esse mercado, elitizou o perfil dos frequentadores de alguns dos estabelecimentos. Um exemplo é a rede Dr. Consulta, uma das pioneiras no setor.

Criada em 2011, com a primeira unidade na favela de Heliópolis, a empresa tinha quatro centros médicos em 2014. Neste ano, vai terminar com um total de 79. Parte deles fica na periferia, mas outros em áreas valorizadas de São Paulo, como a avenida Nove de Julho, no trecho dos Jardins, e a avenida Rebouças.

"Hoje, 57% do nosso público é da [classe] A e B", afirma Renato Velloso, vice-presidente de Desenvolvimento e Novos Negócios da rede.

O potencial desse mercado tem atraído investidores de fora do universo da saúde, como o empresário Roberto Justus. Em sociedade com Ruy Marco Antonio, ex-proprietário do Hospital São Luiz, ele abriu no ano passado a clínica Megamed.

Com condições especiais para torcedores da Gaviões da Fiel, a organizada do Corinthians, a clínica tem duas unidades na zona leste de São Paulo e pretende inaugurar franquias no interior paulista e em outros estados.

Além de pessoas físicas, aposta em parcerias com empresas que não pagam plano de saúde, mas querem oferecer algum benefício aos funcionários, ou com grupos de trabalhadores autônomos, como motoristas de um determinado ponto de táxi, de acordo com Vania Cardoso, diretora-geral da Megamed.

Grandes empresas também decidiram entrar no segmento. Em março deste ano, a Amil obteve aprovação do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) para abrir, junto com o grupo Dasa de diagnóstico, uma rede de clínicas voltada ao público de menor poder aquisitivo.

Pioneira no mercado, a Clínica Fares, com três décadas de existência, anunciou a inauguração de 20 unidades novas com linha de crédito do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).

Uma das clientes, a autônoma Flávia Mendes Baptista, 43, conta que decidiu fazer fisioterapia no local depois de experiências como a de ficar três horas em pé com o tornozelo fraturado em hospital público —e não conseguir atendimento. Sem condições de pagar um plano, optou pela clínica após saber que poderia parcelar seu tratamento em até dez vezes.

Na contramão do modelo de consultas rápidas, uma nova rede aberta na semana passada, a Amparo, aposta na medicina de família. Pelo sistema, ela promete que o paciente terá o acompanhamento de um mesmo médico generalista, evitando idas desnecessárias a especialistas.

Independente do modelo, o mercado se beneficia da expansão dos cursos de medicina, que ampliou a força de trabalho disponível, diz Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP. De 2010 a 2017, o número de registros médicos aumentou 23%, enquanto a população brasileira cresceu 9%.

Sem tratamento completo, clínicas têm impacto no SUS

Cliente da rede de centros médicos Dr. Consulta, Lais Pincheski, 21, já teve plano de saúde e depois foi para o SUS, mas se decepcionou com a dificuldade de obter atendimento na rede pública. "Em posto de saúde agora só vou para tomar vacina", diz.

Lais Pincheski, 21, em clínica de baixo custo, em São Paulo - Joel Silva/Folhapress

Pode ser assim no caso dela, mas não é a regra entre pacientes de clínicas de baixo custo. Quando precisam de cirurgias e tratamentos mais complexos e caros, boa parte recorre ao SUS —e, para isso, muitas vezes, tem que refazer todo o caminho de consultas primárias na rede pública.

Esse é um dos motivos pelos quais esses estabelecimentos populares deveriam ser alvo de maior regulamentação, segundo avaliação de Mário Scheffer, professor da USP. 

Como as clínicas não são planos de saúde, não são fiscalizadas pela ANS (agência nacional de saúde suplementar).

Uma das poucas regulações sobre o tema é uma resolução recente do Conselho Federal de Medicina, que, entre outras regras, veta promoções como cartões de fidelidade nas clínicas e afirma que só se pode divulgar valores de procedimentos dentro das unidades —o que nem sempre ocorre.

Com a regulação fraca, clientes se surpreenderam quando a rede Dr. Agora fechou, no ano passado, suas clínicas que funcionavam em algumas estações do metrô de São Paulo. 

Pacientes que pagaram por vacinas com mais de uma dose encontraram portas fechadas e reclamaram por não conseguirem obter ressarcimento. A reportagem não conseguiu localizar na última semana os responsáveis pela rede.

Em meio a casos como esse, o professor da USP diz ter dúvidas sobre a dimensão real do mercado. "Pode ser, em alguma medida, uma bolha."

De dentro do negócio, diretores das clínicas dizem ver motivos para que não seja isso. "Mesmo que a economia melhore, dificilmente o SUS vai se recuperar a tempo", afirma Vania Cardoso, diretora da clínica Megamed. 

"Teve um reajuste dos planos recentemente, então vai vir mais paciente", avalia Marcelo Abrahão, diretor da Fares.

Em junho, a Justiça limitou o reajuste anual de planos de saúde individuais ou familiares a 5,7%. Mas dias depois, outra decisão autorizou aumentos de até 10%.

Tire suas dúvidas sobre os planos de saúde

Que cuidados devo ter na hora de contratar um plano de saúde? O primeiro passo é entender que tipo de plano de saúde melhor se adequa a você e à sua família. Veja os modelos abaixo

Como saber se a operadora é de confiança? No site da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), ans.gov.br, você pode conferir se a empresa está registrada e ver seu desempenho no programa de qualificação da agência. Também é útil conferir a posição da operadora no ranking de reclamações recebidas

A empresa pode cobrar taxa de adesão? Não, isso é vetado pela ANS

O que o plano deve cobrir obrigatoriamente? Existe um rol de procedimentos que todo plano precisa cobrir, mas há variações de acordo com o tipo de cobertura contratada. Você pode conferir a lista completa no site da ANS

O que são planos com contrapartida? Além dos planos tradicionais, em que se pagam apenas as mensalidades, há planos em que os gastos com atendimentos são divididos com o usuário. Isso significa que, para fazer um exame, por exemplo, o beneficiado pagará uma quantia, determinada pelo contrato, mais a mensalidade regular

O que é lesão ou doença preexistente? No momento da adesão, o consumidor precisa informar se tem alguma doença. Caso tenha, a operadora pode oferecer uma cobertura parcial temporária (CPT) para procedimentos ligados a essa enfermidade. Isso significa que procedimentos de alta complexidade, cirurgias ou internações em UTI podem não ser cobertos pelo plano. O prazo máximo para a CPT é 24 meses. A operadora também pode oferecer a cobrança de uma taxa extra para garantir a cobertura completa

A operadora pode se recusar a me vender o plano porque eu sou idoso ou tenho alguma doença? A ANS não permite que as operadoras recusem esses clientes 

O que é o período de carência? É o tempo em que o cliente já está pagando a mensalidade, mas tem que esperar para que determinados procedimentos sejam cobertos pelo plano. O máximo para urgência e emergência é 24 horas. Para partos (exceto casos de emergência), 10 meses. Para demais situações, 6 meses 

O que é portabilidade e quem tem direito a ela? É possível mudar de plano dentro da mesma operadora ou migrar para outra sem ter que cumprir os prazos de carência, desde que a mudança seja para um plano compatível. Isso é possível para usuários de planos individuais ou coletivos por adesão. Para saber se você se enquadra nos critérios estabelecidos, verifique as condições completas no site da ANS

E a portabilidade especial? Também dá direito a mudar de plano sem cumprir carência, mas o público que tem direito a ela é outro: beneficiários de uma operadora que tenha o registro cancelado pela ANS, dependente que perde o direito de continuar no plano (pode ser por morte do titular ou porque atingiu a idade limite para continuar como dependente) e para aposentados ou demitidos sem justa causa. Há ainda outras condições, que podem ser consultadas no site da ANS

A operadora pode cobrar pela portabilidade? Não, a portabilidade deve ser sempre gratuita

Como saber que plano é compatível com o meu? Consulte o guia da ANS, disponível no site da agência reguladora

Quando o plano pode ser reajustadoNo aniversário do contrato e quando o titular ou dependente atinge nova faixa etária 

Caso eu seja demitido, tenho direito a continuar no plano de saúde da empresa? Sim, mas você passará a pagar o valor integral da mensalidade. Para quem foi demitido sem justa causa, é possível permanecer por 1/3 do tempo em que fez parte do plano. O tempo mínimo de permanência no plano é de seis meses e o máximo, 24 meses. 

E se eu me aposentar? Os aposentados com mais de dez anos de contribuição têm o direito de permanecer no plano sem prazo limite. Para os demais, cada ano de contribuição dá direito a ficar no plano por um ano. Nos dois casos, o aposentado deve arcar com o valor integral da mensalidade 

E se a empresa fechar ou cancelar o plano? Tanto o aposentado como o demitido podem continuar na mesma operadora, mas terão que migrar para planos individuais, caso sejam oferecidos pela seguradora, e arcar com o valor praticado nessa modalidade. Para a contagem da carência, é considerado o tempo que o beneficiário integrou o plano cancelado

Em que condições a operadora pode rescindir ou suspender o contrato? Nos planos individuais, apenas em caso de fraude (se você emprestar a carteirinha para outra pessoa, por exemplo) e de inadimplência por dois meses, consecutivos ou não —nesse caso, o cliente deve ser notificado 10 dias antes do cancelamento. Nos coletivos, as regras para cancelamento são acordadas com a operadora, mas a rescisão não pode ser feita antes do período de 12 meses de vigência, a menos que motivada por alguma das cláusulas previstas no contrato

O contrato do meu plano é anterior a janeiro de 1999. O que isso significa? A Lei dos Planos de Saúde definiu algumas regras para os contratos celebrados a partir de 2 de janeiro de 1999. Planos anteriores podem ser adaptados à nova lei, se o consumidor assim desejar, sem cumprir carência. Caso o cliente opte por não fazer a adaptação, ficam valendo as regras definidas no contrato

Se eu tiver algum problema com meu plano, quem devo procurar? Você pode registrar uma reclamação junto à ANS ou ao Procon

Regras válidas para planos contratados a partir de janeiro de 1999 ou que tenham sido adaptados à lei 9.656/98. Fonte: ANS e Procon

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