Em bairro problemático do Rio, balé serve como 'anestesia' e escape

Biblioteca pública abandonada chegou a ser sede para ensaios do grupo

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Alunos a caminho da aula na favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro
Alunos a caminho da aula na favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro - Dado Galdieri/The New York Times
Ernesto Londoño
Rio de Janeiro | The New York Times

As jovens estudantes de balé entraram na sala com tinta vermelha - manchas de sangue simuladas —espalhada por seus collants. Era um figurino macabro para meninas de apenas sete e oito anos de idade, que dançariam diante do prefeito e do governador.

Para compreender por que sua amada professora de balé, Daiana Ferreira de Oliveira, escolheu aquele figurino para as meninas, é útil recuar a um dia que marcou a infância dela.

Oliveira tinha seis ou sete anos quando a mãe a levou, e às suas duas irmãs, de sua casa em um bairro pobre da zona norte do Rio de Janeiro ao majestoso Teatro Municipal, no centro da cidade, para assistir a "O Lago dos Cisnes".

A família atraía atenção: uma mãe solteira negra, que ganhava a vida fazendo faxina, conduzindo suas filhas atônitas em meio aos espectadores, quase todos brancos, pelas portas douradas de uma das joias arquitetônicas da cidade, para que elas assistissem ao seu primeiro balé.

Rosali Ferreira dos Santos, a mãe de Daiana, desenvolveu seu fascínio pela arte ao acompanhar seus patrões a galerias de arte e ao teatro. Ela passou a considerar que esse tipo de passeio —idas a concertos, óperas e peças - era essencial para suas filhas, sempre que a família conseguisse obter ingressos gratuitos ou baratos.

"Minha mãe dizia que precisávamos de cultura", disse Oliveira, 29. "Para ela, não era questão de ser rico ou pobre".

Oliveira disse que viver sem ópera não a teria incomodado muito, e recordou ter se sentido horrorizado com "toda aquelas pessoas gritando umas com as outras".

Mas a dança a deslumbrou. "Uma anestesia", ela definiu. "Para pessoas como nós, não existem analistas".

Êxtase e desespero

Desde que me mudei para o Rio de Janeiro, a realidade dividida desta cidade vem me fascinando —e às vezes assustando.

Cresci na Colômbia, onde, como em boa parte da América do Sul, a desigualdade gritante é tão institucionalizada que é fácil se habituar a ela. Mas a maneira pela qual o esplendor e a pobreza coexistem no Rio Janeiro gera um contraste chocante.

Uma batalha a tiros que impede dezenas de milhares de pessoas de saírem de casa por todo o dia não atrapalha um imenso festival de música, a alguns quilômetros de distância. Nas praias superlotadas de Copacabana e Ipanema, é fácil esquecer que um surto severo de violência na cidade levou o governador do Rio de Janeiro a solicitar uma intervenção militar, em fevereiro.

No atordoante espectro que separa êxtase e desespero e domina a cidade, Manguinhos, o bairro em que Oliveira cresceu, se inclina solidamente na direção do segundo sentimento.

Ele é parte da colcha de retalhos de distritos conhecidos como favelas, áreas ocupadas informalmente há décadas pela população pobre. Traficantes da poderosa gangue de drogas Comando Vermelho controlam a área há muitos anos, exercendo autoridade maior que a da polícia.

É o tipo de lugar no qual os moradores não esperam que homicídios sejam investigados, quanto mais solucionados. Drogas são vendidas abertamente, expostas em mesinhas. O lixo é eliminado por meio da queima de pequenas pilhas de resíduos, nas calçadas.

Um vislumbre de esperança

Quando Oliveira se formou em educação física, em 2012, a situação do Brasil parecia estar começando a melhorar.

A economia do país vinha crescendo em ritmo saudável há uma década. As oportunidades de educação para os pobres estavam se expandindo. Havia planos grandiosos para estabelecer uma presença permanente da polícia nas favelas, e para lhes oferecer serviços básicos, enquanto o país se preparava para a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016.

Um dos sinais tangíveis de mudança foi a criação de uma biblioteca bancada pelo estado em Manguinhos, onde Oliveira começou a oferecer aulas gratuitas de balé clássico em 2014.

Ela disse que tenta ser calorosa mas firme com as alunas, as alerta sobe engravidarem inesperadamente, e aconselha que não namorem com traficantes de drogas.

"Não há destino inevitável", ela diz às meninas e jovens de suas turmas de balé. "Só porque você nasceu em uma favela, isso não significa que sua vida precisa correr de certa maneira. Vocês não precisam terminar trabalhando como domésticas".

A mensagem fez sentido para Danice Sales, uma de suas primeiras alunas, que mais tarde estudaria literatura italiana.

"Era uma forma de escapar à realidade", disse Sales, 29. "Passei por coisas muito difíceis em minha vida e a única coisa que permitiu que eu evitasse ter de recorrer a medicação foi o balé".

Isabelle Sande, à esquerda, e Isabela Peixoto fazem balé na favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro
Isabelle Sande, à esquerda, e Isabela Peixoto fazem balé na favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro - Dado Galdieri/NYT

Uma virada para pior

Em 2014, o otimismo deu lugar ao medo, quando a economia do Brasil começou a se contrair e uma investigação sobre corrupção revelou um padrão sistêmico de propinas entre os líderes empresariais e políticos do país. As autoridades estaduais do Rio de Janeiro começaram a fechar os centros governamentais de emprego e as iniciativas que haviam sido criadas nos anos de boom.

Entre os projetos cancelados estava a biblioteca de Manguinhos, o que motivou Oliveira a levar suas alunas a protestos em 2015.

Ela e outros ativistas comunitários persuadiram o gabinete do prefeito a ajudar a pagar as contas, repetindo sempre uma pergunta desconfortável: "Como é que um país que está se preparando para sediar uma olimpíada pode fechar bibliotecas?"

Mas poucos meses depois do encerramento dos jogos, a biblioteca e dezenas de programas do governo foram fechados. Oliveira ficou furiosa por alguns dias. Mas em seguida desenvolveu um plano.

Cadeado e diplomacia

Com a ajuda de um chaveiro, que não cobrou por seu trabalho, Oliveira invadiu a biblioteca abandonada, limpou o lugar e colocou um cadeado na porta.

Em seguida, foi necessário um pouco de diplomacia de favela. Oliveira procurou um líder do Comando Vermelho e pediu que ele poupasse a biblioteca do saque sofrido por outros edifícios governamentais abandonados. O traficante, que respeitava o trabalho que ela vinha fazendo, concordou.

A violência se agravou e o desemprego cresceu, mas dezenas de pais continuaram a levar suas filhas, e alguns poucos filhos, às aulas de Oliveira.

"Era uma maneira de elas compreenderem o mundo lá fora, um mundo que não existe aqui", disse Tatiane Ribeiro Barboza, 40, que tem duas filhas no grupo de balé. Mas a principal atração era o contato com Oliveira. "Elas veem uma mulher sem fraquezas", disse Barboza.

Giovana Xavier, professora de educação na Universidade Federal do Rio de Janeiro, disse que pessoas que sirvam como exemplos, em comunidades como Manguinhos, podem ter efeito transformador sobre os jovens.

"Um grande desafio é construir referências positivas sobre o que significa ser negro", disse Xavier. "As ideias prevalecentes na mídia são limitadas ao crime, no caso dos homens, e à sexualização exagerada, no caso das mulheres".

Isabelle Sande, 15, uma das estudantes de balé de Manguinhos, disse que o balé lhe deu disciplina e a levou a pensar sobre política. Ela estava muito interessada, por exemplo, em participar de uma performance sobre feminismo.

"É um assunto tabu na favela", ela disse. "Mas esse é o começo do caminho da afirmação, da conscientização".

Alunas de balé fazem aquecimento em aula na favela de Manguinhos, no Rio
Alunas de balé fazem aquecimento em aula na favela de Manguinhos, no Rio - Dado Galdieri/NYT

Uma pose para a eternidade

Este ano, começou a correr em Manguinhos o boato de que a biblioteca seria reaberta e que o edifício passaria a portar o nome de Marielle Franco, uma vereadora negra assassinada em março.

Oliveira não ficou tão entusiasmada assim com a notícia. A biblioteca foi inaugurada em um ano eleitoral, e agora seria reaberta em outro. Os políticos sempre parecem interessados em usar fotos de seu grupo de dança em campanha, ela se queixa, mas nada fazem para ajudá-la depois que se elegem.

Por isso, quando Oliveira foi convidada a preparar uma coreografia especial para a cerimônia de reabertura, que seria assistida por Luiz Fernando Pezão, o governador, e Marcelo Crivella, o prefeito do Rio, ela decidiu que tornaria a ocasião memorável.

"Refleti sobre tudo que foi tirado de nós, sobre as violações, a violência, não só física mas psicológica", ela disse. "A cada dia nos sentimos morrer um pouco, porque a cada dia alguma coisa nos é tirada, seja um livro, seja um pedaço de pão".

Ela não informou as autoridades sobre a coreografia que tinha planejado.

Assim, flanqueados por uma legião de fotógrafos, governador e prefeito empalideceram quando as meninas entraram na sala, com os figurinos manchados de tinta vermelha, e se jogaram no chão, se fingindo de mortas.

Apontando o dedo para as autoridades, furiosa, Oliveira gritou:

"Não somos votos! Se a biblioteca fechar depois da eleição, voltaremos para cá, e não sairemos".

Ao terminar sua fala, ela pediu que as bailarinas se levantassem.

"Vocês não estão mortas", ela disse. "Foi só uma maneira de mostrar que, a cada dia que estamos aqui, estamos sangrando".

Tradução de Paulo Migliacci 

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