Aos 10 anos, pastora 'cura' pessoas e vira celebridade para gays

Vitória de Deus tem 323 mil seguidores no Instagram e 26 mil no YouTube

 Vitoria de Deus, 10, canta e prega na avenida Paulista

Vitoria de Deus, 10, canta e prega na avenida Paulista Foto: Eduardo Knapp/Folhapress

Dhiego Maia
São Paulo

Ela diz que orou para o Nego do Borel e o funkeiro entrou “na linha”. É amiga de Anitta e muito ovacionada pelos gays apelidados de ‘poc’.

No passado, a gíria poc era usada para nomear os gays afeminados da periferia. Atualmente, perdeu a carga pejorativa e passou a ser usada como uma expressão livre na comunidade LGBT.

A dona dessa banca toda só tem dez anos e muita espontaneidade para “curar” pessoas na rua com sua oração e seu louvor. “Mas tudo é para a honra e a glória do senhor Jesus”, repete infinitas vezes.

Vitória carrega Deus até no sobrenome e uma legião de fãs nas redes sociais: são 323 mil no Instagram e mais 26 mil no YouTube. 

Nascida em Petrolina (PE), Vitória é negra e tem orgulho de seu cabelo crespo esvoaçante. É a segunda de cinco filhos de Cícero Graciliano de Deus, 51, um funileiro que largou o conserto de panelas para uma missão: fazer da filha uma cantora gospel conhecida em todo o Brasil.

Cícero, que também é cantor gospel, diz que Vitória escapou da morte com um propósito. “Ela teve um problema sério nos pulmões assim que nasceu. Mas sobreviveu e desde os três aninhos ela canta e ora para as pessoas. Dom não depende de idade”, afirma.

Da mãe fala pouco. A genitora é separada de Cícero e permanece morando em Pernambuco. Vitória diz que sonha em tê-la por perto um dia.

A menina já é chamada de minipastora pelas posições firmes que defende —tudo, claro, baseado na Bíblia. “Eu amo as pocs, mas, na verdade, é um pecado.” E continua: “Cada um escolhe o que quer ser. Eu tenho muitos amigos LGBTs e não quero machucar nenhum deles”, afirma.

Foi criticando os gays que Vitória ganhou a terra sem lei da internet virando meme. Em 2017, ela foi até as redes sociais e defendeu que Deus “não criou Adão e Ivo”. Também ficou ao lado do pastor e deputado Marco Feliciano (Podemos-SP), um dos entusiastas da cura gay.

A contenda com os LGBTs só virou a página quando em uma interação ao vivo no Instagram um internauta pediu que ela mandasse um beijo para as pocs. Ela não só mandou um beijo, como disse que iria orar por todos eles.

“Ela virou ícone a partir disso. Não sabia o que era uma poc, mas foi superfofa. E mesmo quando soube o que nós éramos, ela continuou nos amando”, diz o bailarino Daniel Anjos, 24, após assistir ao show da artista na av. Paulista em um domingo de agosto.

A avenida cartão-postal da cidade é o principal palco da minipastora. Em uma mão, ela segura o microfone, em outra, ora e unge com óleo os fãs, canta tudo o que sabe do cancioneiro gospel e tira muitas fotos. “Gente eu não estou aqui para cobrar dinheiro. Seja abençoado com o meu louvor”, diz. As apresentações duram ao menos três horas e rendem R$ 150 em doações.

O ator Leonardo Miggiorin, 36, passeava com o sobrinho na avenida e não se conteve ao ver a menina famosa das redes sociais. “Acho uma força da natureza, uma graça, uma menina linda que fala com propriedade sobre uma coisa que ela acredita”, diz.

Vitória também quebrou a internet ao aceitar gravar um clipe com a funkeira trans Lady Chokey, 23. A artista carioca surfa no funk proibidão. Seu maior sucesso é “Quica”, uma letra que exalta o sexo explícito sem frescura.

Juntas cantaram “Sobrenatural”, uma canção típica do gênero pentecostal, com estrofes de autoajuda que dizem: “Deus vai fazer de ti um grande vencedor”.

Lady diz que ambas “causaram”. “Sou uma trans nada convencional e tenho muitos lugares de fala. Peso 150 kg e cantar um louvor tão arrepiante como esse com a Vitória abalou os dois mundos: o sagrado e o profano”, conta.

O clipe já foi visto 268 mil vezes e dividiu opiniões. Uma fã disse que Vitória “estava zombando de Deus ao cantar com uma aberração”. Já outro foi só elogios para a pequena. “Você é a dona do gospel pop”. 
Vitória diz que encontrou resistência no meio evangélico após o dueto com Lady. “Sim, eu sofri preconceito, mas segui em frente”, disse.

Para Lady, a menina prodígio do gospel se deu bem com a parceria. “Depois do clipe a rejeição dela no meio LGBT caiu muito”, afirma. Lady também deu um mimo à nova amiga: a produção da única música que Vitória tem disponível nas plataformas digitais.

É a monetização virtual da letra de “Vitória garantida”, as apresentações nas igrejas—a menina não sai de casa por menos de R$ 500 —, e as doações recebidas quando canta que têm mantido a família.

A fama já rende até cuidados de beleza. No salão Jacques Janine, na Vila Olímpia (zona oeste), o cabeleireiro Mike David, 25, é quem está à frente do desafio de transformar as madeixas alisadas de Vitória num super black power. “O melhor é que é uma poc cuidando de uma menina que tanto inspira”, conta.

Mas o cotidiano não é fácil entre o clã dos de Deus. Cícero e os cinco filhos dividem o mesmo quarto em uma quitinete na periferia de Suzano (cidade da Grande São Paulo).

O funileiro faz café da manhã, conta histórias com fantoches para os filhos dormirem e não mede esforços de vê-los na escola. “Não quero minha filha bitolada na fé. Ela só canta aos finais de semana e precisa estudar”, diz ele.

Vitória vai à escola no carro que conseguiu comprar com a venda de seu primeiro CD, um Renault Scenic 2004 que sempre a deixa na mão.

A minipastora cursa o 5º ano do ensino fundamental na Jacques Yves Cousteau, em Suzano. Grades recobrem os corredores e o telhado de quatro salas que foram alvo de vandalismo. Câmeras de segurança e o elevador que era usado pelos alunos com deficiência acessarem o primeiro andar também não foram poupados.

A secretaria de educação da gestão Márcio França (PSB) diz que a comunidade escolar optou pelas grades para proteger os alunos e que a escola passa por reforma. 

No local, Vitória é vez ou outra reconhecida como “aquela menina dos vídeos”.

“Estudo muito porque eu quero ser juíza, além de cantora. Achei lindo uma juíza jurando sua decisão colocando a mão sobre a Bíblia”, diz.

Para chegar lá, a minipastora vai precisar se livrar dos urubus que vão tentar roubar seu talento, diz Luiz Carlos Pereira, 51, proprietário da gravadora LCP, que passou a gerenciar a carreira da menina.

“Como o mercado gospel ainda é amador existe muita gente que acaba aproveitando a inocência dos artistas para só lucrar”, conta.

E Vitória diz que vai seguir cantando nas ruas, o lugar onde “uma missionária deve estar”.

Para o empresário Fábio Domingues, 35, “na inocência, ela está fazendo o que as igrejas nunca foram capazes de fazer: amar as pessoas independentemente do que elas são”.

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