Barcos irregulares sobrevivem na Amazônia um ano após naufrágios

Pará já flagrou 47 casos em 2018; embarcação afundou com 15 a bordo

Thiago Amâncio
São Paulo

Um barco afundou na noite de domingo (29) em Colares, no litoral da baía de Marajó (PA), com 15 pessoas e 9 motos a bordo. Um rapaz de 23 anos morreu. A suspeita é de que havia sobrecarga.

A tragédia indica que pouca coisa mudou no transporte fluvial na região amazônica, que ainda convive com falta de fiscalização e embarcações irregulares um ano após dois grandes naufrágios deixarem, só no Pará, 32 mortos.

Os que dependem desse transporte dizem que não houve aumento de fiscalização. Questionado pela reportagem sobre as ações tomadas desde as tragédias, o governo paraense afirma apenas que "as fiscalizações, por padrão, são rotineiras e constantes nos portos e travessias".

No ano passado, a Arcon, agência reguladora paraense, aplicou 101 notificações a barqueiros irregulares. Neste ano, até julho, foram 47.

Agosto de 2017 começou com um empurrador de balsas chocando-se contra um cargueiro em Óbidos, no oeste do estado. Era dia 2, e o acidente deixou nove mortos.

A menos de 500 quilômetros dali (via rio), 20 dias depois, um barco naufragou em Porto de Moz, quando 23 pessoas morreram. Outra tragédia chocou o país dois dias adiante: uma lancha virou em Salvador e 19 pessoas morreram.

Os naufrágios daquele mês ajudaram a tornar 2017 um dos anos mais perigosos na navegação recente no Brasil. Segundo relatório da Marinha, 307 pessoas morreram ou desapareceram em eventos do tipo no ano passado (101 deles em rios) —em 15 anos, o índice foi superado apenas em 2008 (310 mortos) e 2014 (311 mortos).

A tendência é que neste ano o total seja menor. Até o primeiro semestre, o mesmo balanço aponta 99 mortos e desaparecidos. De 2002 até 30 de junho de 2018, 4.322 pessoas morreram ou desapareceram em acidentes na água. O número ainda é pequeno se comparado ao de mortos no trânsito rodoviário brasileiro, cerca de 47 mil por ano.

Ruberley Torres da Fonseca, 41, ainda passa a noite em claro quando precisa viajar de barco. Ele estava no Capitão Ribeiro, navio que naufragou em Porto de Moz, e foi o primeiro sobrevivente a chegar à cidade, com uma canoa que pegou emprestada de um ribeirinho depois de ficar horas à deriva e nadar até a costa do rio Xingu.

Quando chegou à cidade, ele alertou Defesa Civil, polícia e prefeitura, trocou de roupa e ainda voltou para ajudar a resgatar outros sobreviventes.

"Viajei três vezes depois. A gente não dorme direito mais, passa a noite em claro", conta. 

A primeira viagem foi "30 ou 40 dias depois do acidente". Pegaram um mau tempo no mesmo lugar do naufrágio, "nessa hora eu fiquei bastante tenso". "A balsa é mais estável, mas fico preocupado, ainda mais quando levo minha esposa e minha filha", completa.

Ruberley, dono de um supermercado em Porto de Moz, é o primeiro a dizer que nada mudou para quem anda de barco por ali. "Só mudou para as pessoas que perderam gente", diz, se referindo aos 23 mortos —entre eles, crianças, grávidas e famílias inteiras. "O pessoal falava tanto de fiscalização disso e daquilo e eu não vejo nada", conta.

É que o barco estava irregular. Segundo denúncia apresentada pelo Ministério Público em fevereiro deste ano, a embarcação só tinha autorização para navegar entre Santarém e Prainha, cidade a 180 quilômetros rio Amazonas acima. Mas o barco foi além, virou o rio Xingu e pretendia ir até Vitória do Xingu se não tivesse afundado.

O dono da embarcação disse à polícia que fazia o trajeto havia três anos, semanalmente, mesmo sem autorização. Ele havia sido notificado pela Arcon em 5 de junho, mas ignorou o alerta, porque com o trajeto maior deveria contratar mais tripulantes.

Relatório da Marinha apontou ainda que o barco tinha trincas e rachaduras e estava com a parte elétrica "praticamente sem condições de uso".

Com todos esses problemas, a embarcação não resistiu a uma tromba-d'água, que enfrentou naquela noite de 22 de agosto. Muita gente dormia nas redes e, com as lonas esconderem-se da chuva, não conseguiram deixar o navio. Corpos de crianças foram encontradas no porão.

Duas pessoas foram denunciadas sob a acusação de homicídio: Alcimar Almeida da Silva e Audilene Silva Ribeiro, e aguardam julgamento.

À Folha, Audilene disse que Alcimar é seu ex-marido e que o navio apenas estava em seu nome, mas que nada tinha a ver com a empresa e que nunca nem fez essa viagem.

"De qualquer jeito é uma tristeza, são muitas vidas que se perderam", disse ela, que afirmou não ter advogado. 

A reportagem não conseguiu contato com Alcimar. À época do naufrágio, ele assumiu as falhas na embarcação.

O transporte via água é uma das principais formas de locomoção em toda a Amazônia, que tem rodovias precárias e é abundante em rios. Só na região, 9,7 milhões de pessoas foram transportadas no ano passado, de acordo com a Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários).

Para Hito Braga de Moraes, professor de engenharia naval da UFPA, o transporte fluvial não pode ser colocado num bolo só: "A navegação de carga é segura. A de passageiro, depende da embarcação", diz.

Segundo Moraes, estima-se que 50% do transporte fluvial na região amazônica seja feito de forma irregular. "Esse transporte é vital, principalmente no interior. Mas a Amazônia é muito grande, é difícil a fiscalização. É preciso que os passageiros também não embarquem em navios sem autorização, sem inspeção", diz.

"Só na orla de Belém são 67 portos. Imagina quantos pontos de embarque tem em cada rio no meio da Amazônia."

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