Dono e 'morador' da Love Story, Tio João, 68, quer apostar em sertanejo

Chefe de inferninho que vive crise no centro de SP só tirou férias após infartos

Chico Felitti
São Paulo

Às 21h de terça-feira (7), três horas antes de abrir suas portas, a boate Love Story, no centro de São Paulo, está escura e deserta. Só há, no fundo dos camarotes que ficam no segundo andar, um homem careca e sem camisa. “Chega aqui”, diz João Tiago de Freitas, mais conhecido como Tio João.

O empresário de 68 anos estava tirando um cochilo, mas acordou para trabalhar.

A Love vai abrir, ele afirma, negando o rumor de falência que se espalhou depois de o inferninho pedir recuperação judicial, para poder parcelar uma dívida que já passa de R$ 1,7 milhão —mais de 70% do total em razão de pendências trabalhistas.

“Fico quase 24 horas [por dia] aqui”, diz João, que, nos últimos 15 anos, tirou férias somente nas quatro vezes em que foi hospitalizado por infarto agudo do miocárdio.

Enquanto ele coloca a camisa, responde se o boato de que não tem mais casa e que mora ali é verdadeiro. “Não chego a morar. Mas quase. Tem uma cama aqui, no fundo do escritório, eu fico um pouco na pista de dança lá embaixo e depois fico aqui, olhando tudo pelas câmeras.” E dando ordens a seu braço-direito Tião, como de expulsar desordeiros e de reconhecer larápios.

“Ele é durão”, diz a prostituta Marcy, 27, que passa pela boate pelo menos uma vez por semana, depois de fazer ponto na rua Rego Freitas. “Não gosta de gente muito louca, não gosta de roubo, não gosta de putaria. Cê acredita que o dono da boate das putas não gosta de putaria?”

Quando ouve da sua fama, João ri pela primeira vez em meia hora. “As pessoas se corrompem na noite. É preciso levar a sério”, afirma.

A CULPA É DO BAFÔMETRO

Ele levou a noite a sério. Foi João que 28 anos atrás fundou a boate, junto com dois sócios que se recusam a aparecer.

“Havia esse nicho de mercado que era muito mal aproveitado, de fazer festa tarde.” A Love Story ficou famosa por ser o lugar onde prostitutas, garçons e barmen de outras baladas iam se divertir depois de terminar sua carga horária.

Pegou. Em 2005, o pugilista Mike Tyson carregou duas garotas de mini-saia em seus ombros na pista de dança. A garota de programa e escritora Bruna Surfistinha se disse viciada no lugar. Pilotos de Fórmula 1 enchiam os funcionários de gorjetas de US$ 100 quando iam escondidos ao lugar, durante o Grande Prêmio do Brasil. O chef Alex Atala fez um jantar lá três anos atrás. Havia filas para entrar no lugar depois das 3h.

João Freitas (à esq.) ao lado do chef Alex Atala (centro) e do filho Milton Freitas na Love Story em 2015 - Divulgação

Só que o horário ousado de funcionamento deixou de ser exclusividade da casa noturna com corações de neon na fachada. “Hoje tem 30 casas fazendo o mesmo horário que eu”, afirma. É o que chamam de “after-hours”, as festas que começam depois que as outras festas estão terminando. “Foi perdendo aquele encanto, aquele charme.”

E foi perdendo o público. De 600 frequentadores por noite, a Love recebe hoje 200 pagantes, na conta do dono. “Vem caindo progressivamente há uns cinco anos.” O maior responsável pela queda é a violência, diz ele. “As pessoas não conseguem chegar até aqui.”

A difusão do bafômetro foi, na opinião dele, outro fator. “O Love Story sempre trabalha depois da meia-noite. Aí a pessoa está lá em Carapicuíba, lá nos Jardins, já curtindo. Se vem de carro, topa com uma blitz. Daí não vem.”

João defende que os percalços são uma marca da economia do país. “Não é privilégio meu, não. Olha o tanto de empresa grande que está em concordata”, afirma.

A dívida que o levou à recuperação judicial nasceu quando ele tentou enxugar a brigada. Demitiu cerca de 20 dos 70 funcionários que tinham, em média, dez anos de casa. Vieram os processos. Um funcionário alega ter perdido uma parte da audição por causa do som alto. Outro pede centenas de horas extras.

Tio João, que considera os funcionários uma espécie de família e oferece um churrasco anual para todos na sua chácara, é prático em responder como se sentiu: “Acontece”. Ele faz piada dizendo que sua situação ainda poderia ser pior. “Imagina o Pedro Parente, que entrou na Petrobras e pegou ela quebrada?” 

SERTANEJO CONTRA A CRISE

Não que ele deseje voltar aos tempos áureos. “Sou zero nostálgico. Lembro das coisas como elas eram, mas sem saudade”, afirma.

João saiu de Iturama, uma cidade que não tinha nenhuma boate em Minas Gerais, quando completou 18 anos, na década de 1970. Veio direto para o centro da capital paulista e, há 50 anos, trabalhou em boates como a Lancaster, na rua Augusta, onde um jovem de nome Roberto Carlos se apresentava de vez em quando. Passou também pela Le Bateau e pela Kilt. 

Fez de tudo, de servir uísque a cuidar do caixa, passando por apartar muita briga, até virar um dos gerentes mais conhecidos da cidade. Criou seis filhos com o dinheiro da noite. “Eu vivo o hoje. A culpa disso que está acontecendo não é minha. Eu não posso me frustrar porque a culpa não é minha”, ele repete.

Se a recuperação for aprovada pela Justiça, a Love Story deve apresentar uma proposta, que pode incluir maior prazo para quitar a dívida e até redução no valor a ser pago.

A intervenção judicial não põe fim à sua carreira, avisa João. “O plano é recuperar, lançando mão do que a gente pode lançar. A gente já está preparando alguma coisa.”

Uma das novidades é uma festa aos domingos, noite em que a casa permanecia fechada. “Vai chamar Lovenejo, e vai ser só de sertanejo”, diz o empresário, esfregando a mão direita na esquerda.

“Eu vou conseguir recuperar, pode escrever aí. A Love vai voltar.” Tio João termina de fechar a camisa, coloca os óculos com haste de titânio e, como todos as noites há 28 anos, vai trabalhar. A Love Story não chega a ter 50 pagantes naquela noite.

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