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Jean Wyllys

Obra encerra silêncio sobre vida notável de guerrilheiro gay

Herbert Daniel defendeu direitos LGBT e a luta armada contra a ditadura militar

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Jean Wyllys

​Quando na Comissão Nacional da Verdade e da Memória (que não foi também da Justiça, já que nenhum dos torturadores e ditadores foi julgado por seus crimes), em conversa com Paulo Sérgio Pinheiro, um de seus membros, eu disse que era tarefa daquela comissão interrogar não só os documentos e testemunhas, mas também o silêncio e os mortos.

Sendo a memória uma construção social, é fundamental, para se reconstituir e pensar mais completamente o quadro político-social daqueles anos, ouvir também os até agora silenciados —as camadas populares e as minorias sexuais e étnicas, colocadas à margem do centro de decisão política naqueles anos e ainda hoje relativamente.

O historiador e brasilianista americano James Green, professor da Universidade Brown (EUA), em seu novo livro, interroga atenta e profundamente o silêncio da historiografia do Brasil recente em relação à atuação de Herbert Daniel (1946-1992) na resistência à ditadura militar e à ascensão da epidemia de Aids nos anos 80. 

O ativista e escritor Herbert Daniel
O ativista e escritor Herbert Daniel - Reprodução

Trata-se da apaixonante biografia “Revolucionário e Gay: A Extraordinária Vida de Herbert Daniel –Pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão” (ed. Civilização Brasileira), cujo prefácio tive a honra de assinar.

A história de vida do escritor —que se interessou pelo movimento estudantil quando entrou para o curso de medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e que mudou sua relação com a existência de um movimento social pelos direitos específicos de LGBTs a partir da emergência da epidemia de Aids na década de 1980— é reconstruída em detalhes por James Green, que recorre a documentos, testemunhos, fotografias e aos próprios textos de Herbert Daniel.

Sua biografia é uma peça que torna mais reconhecível e inteligível a paisagem que se esconde por trás do quebra-cabeça que a historiografia deseja montar.

Nasci no mesmo ano em que Herbert Daniel se exilou do país, em 1974, em razão de sua atuação contra a ditadura civil-militar. Entre ele e eu, estende-se uma ponte da qual faz parte o próprio James Green, um dos pioneiros do hoje chamado movimento LGBT no Brasil.

Há algo que funda um laço profundo entre nós, que nos constitui como comunidade que continua no tempo, mesmo que alguns —talvez muitos— de nós tentem a vida inteira desfazer ou esconder esse laço; e esse algo é a experiência com as diferentes expressões da homofobia desde a infância.

Green mostra o quanto Herbert Daniel foi um sujeito constituído por essa homofobia inconsciente e social ubíqua, que se espalha da direita à esquerda desde que o espectro político se definiu como tal. Amiga e 
companheira de Daniel na luta armada, Dilma Rousseff (PT), que assina a orelha do livro, admite que o ambiente homofóbico nas organizações das quais fizeram parte jamais permitiu que Daniel saísse do armário ou que sequer insinuasse seu desejo por pessoas do mesmo gênero.

Naquele momento de resistência armada à extrema violência da ditadura civil-militar, as questões de liberdades individuais, orientação sexual e identidade de gênero não faziam parte das preocupações de Herbert Daniel nem da esquerda como um todo. 

Ele só abraçaria essa causa em seu retorno do exílio, após a publicação da bombástica carta em que critica a lei que anistiou também os assassinos e torturadores que serviram ao regime de exceção. 

Articulando a agenda tradicional da esquerda (a luta por justiça social) com a agenda dos novos movimentos por direitos civis e autonomia dos sujeitos, Daniel começa, então, a travar a luta em favor das pessoas infectadas pelo HIV e doentes de Aids, que, em sua maioria, naquela ocasião (mas também infelizmente hoje!), eram homens gays.

Para muitos destes, inclusive para o próprio Herbert Daniel, o diagnóstico de HIV positivo significou uma saída compulsória do armário e um duplo estigma. 

Num momento em que, para salvar vidas, o discurso de muitos grupos de homossexuais organizados contra a epidemia de Aids era o medo, associando HIV e morte, Daniel ousou dizer que a cura da Aids viria da solidariedade e da derrubada dos preconceitos —uma diferença que teria impacto nos discursos sobre a Aids em todo mundo ocidental.

Herbert Daniel foi fundamental para que hoje possamos viver e gozar de mais liberdades e direitos no Brasil. Seria uma injustiça que sua história fosse silenciada ou apagada na reconstrução da memória social de fatos que mudaram o país. Por isso, essa biografia escrita por James Green é tão relevante e potente. E escrita como um apaixonante romance. 

Quando recebi o texto original de Green e soube do título que ele daria à obra, lembrei-me imediatamente de um trecho de Clarice Lispector que parafraseio aqui: as pessoas estão certas quando dizem que suas vidas dariam um romance. É verdade! “A vida de cada pessoa é passível de um aprofundamento doloroso e a vida de cada pessoa é ‘inacreditável’”. Green se aprofundou na vida de Daniel e mostrou que ela é extraordinária.


Capa do livro "Revolucionário e Gay - A vida extraordinária de Herbert Daniel" - Divulgação

Revolucionário e Gay: A Extraordinária Vida de Herbert Daniel – Pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão
James N. Green, trad. Marilia Sette Câmara, ed. Civilização Brasileira
R$ 69,90
378 págs.

Jean Wyllys é jornalista, escritor e deputado federal pelo PSOL do Rio de Janeiro

Jornalista, escritor e deputado federal pelo PSOL do Rio de Janeiro

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