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Ribeirinhos agora cursam faculdade sem deixar a floresta amazônica

Para isso, jovens usam wi-fi a conta-gotas e driblam falta de estrutura

Vista do porto de Fonte Boa; cidade é usada como ponto de apoio para os universitários da região

Vista do porto de Fonte Boa; cidade é usada como ponto de apoio para os universitários da região Zanone Fraissat/Folhapress

Dhiego Maia
Fonte Boa (AM)

A chegada do pôr do sol marca, por poucas horas, o fim do isolamento imposto pela floresta amazônica a uma vila de pescadores.

Só à noite, Batalha de Baixo é abastecida por energia elétrica gerada a partir de um rudimentar motor a diesel.

A comunidade é acessada apenas pelo rio Solimões e chegar lá exige duas horas de viagem se o barco for potente.

De canoa, o meio de transporte mais usado, o tempo passa de três horas a partir da sede do município, Fonte Boa (AM), a 678 km de Manaus.

A luz que ilumina as 39 casas singelas de madeira, todas elevadas do chão para escapar do período das cheias do rio, causa um alvoroço. Afinal, os 200 moradores terão pela frente apenas quatro horas para assistir aos telejornais, às novelas, produzir o gelo que esfria os sucos de cupuaçu e açaí e bem mais do que isso: cursar faculdade.

A chegada da universidade era mais uma “história de pescador”, entre os mais velhos, conta Maria Esmeraldina Lopes da Silva, 60. “Ninguém achava possível. Aprendemos que a vida seria a de pescar, vender o peixe e viver assim.”

Neste ano, a caçula de dez filhos de dona Esmeraldina tornou-se a primeira da família a entrar na faculdade. Cassiane Lopes, 18, optou por estudar gestão ambiental.

E ela terá muito trabalho pela frente. Batalha de Baixo não tem água encanada nem coleta e tratamento de esgoto. “Também não temos banheiro. Tudo é muito improvisado por aqui”, diz a jovem.

O rio Solimões é o chuveiro e a privada da comunidade. A água usada pelos ribeirinhos para beber e preparar os alimentos vem da chuva. Coletada em caixas-d’água, é tratada manualmente com a adição de gotas de cloro.

Cassiane não está sozinha na empreitada. Prima dela, Raquel Ferreira, 18, também busca a mesma formação e diz que tudo rema contra. “Seria muito mais fácil se a gente tivesse a energia o tempo todo. E seria muito pedir internet?”.

Cassiane e Raquel fazem parte da primeira geração de ribeirinhos que estão trocando a atividade pesqueira e a agricultura pela universidade sem ter que deixar de vez Batalha de Baixo. Tudo isso aconteceu após a chegada neste ano de um polo de educação a distância da Unicesumar, centro universitário com sede em Maringá (PR).

Mas as universitárias de Batalha ainda lidam com muito improviso. Para estudar, precisam usar a estrutura montada pelo governo do Amazonas que leva o ensino médio às comunidades isoladas.

A estrutura conta com um computador, um monitor e uma antena que, via satélite, capta o sinal de internet. Os equipamentos estão montados em sala da única escola de Batalha, a Duque de Caxias.
“A gente só usa quando tem horário vago”, explica Raquel. 

“O mais comum mesmo é a gente pegar a canoa até Fonte Boa para buscarmos as atividades”, afirma Cassiane.

O biólogo Sebastião Ferreira Lisboa Neto, 34, gestor do polo da Unicesumar em Fonte Boa, diz ter criado um atalho para amenizar os percalços dos ribeirinhos. “Como eles não têm internet e não conseguem assistir às videoaulas, criamos uma apostila com todo o conteúdo do curso”.

Os universitários precisam comparecer ao polo a cada três meses para fazer uma prova. A estrutura do espaço é modesta: são quatro computadores de mesa com internet.

A chegada da estrutura animou Metusael Silva Firmino, 30, a criar uma meta ousada: ajudar todos os professores de Batalha a ingressar em uma licenciatura. “Vamos reunir a comunidade para termos um plano em conjunto.”

O pedagogo é o único professor do nível fundamental com curso superior. Os colegas dele têm só o ensino médio. “Na minha época precisei sair daqui e passei muitas dificuldades. Creio que agora está bem mais fácil”, diz.

Metusael já garantiu vaga em sua segunda graduação. Desta vez vai cursar letras com habilitação em inglês a distância. “O meu desafio é melhorar a alfabetização do meu povo. Tenho um aluno no 8º ano que ainda não sabe ler e escrever”, conta.

Na outra margem do rio Solimões, a educação a distância também chegou com força à comunidade de Tamanicuá, distrito de Juruá (AM).

O lugar é mais estruturado do que a irmã, Batalha de Baixo. A vila de 800 habitantes tem ruelas de cimento e caminhos de palafita, além de luz e água encanada.

Há um posto de saúde, mercearias e uma escola dos níveis fundamental e médio. Cerca de 20 moradores estão na graduação a distância da Unicesumar. Além das licenciaturas, há cursos como secretariado executivo e até pós-graduação. Os universitários estão na casa dos 30 anos. Tudo porque não tiveram a chance de sair do local para estudar.

Por lá, a maior bronca continua sendo a péssima qualidade de conexão da internet. Para não gastar com o serviço móvel ineficiente, os estudantes bolaram um jeito de usar o wi-fi a conta-gotas.

Elielson das Neves Ramos, 41, compra bilhetes avulsos com senhas de wi-fi com validade de um mês. Três horas do serviço custam R$ 10. “Eu uso assim: de 30 em 30 minutos. E só acesso para enviar os exercícios à faculdade”, diz. 

A falta de estrutura de rede pesa no bolso de Elielson. A mensalidade no curso de licenciatura em geografia custa R$ 165, mas ele gasta mais R$ 100 por mês só com o wi-fi. “É quase outra mensalidade”.
Márcia Fideles, 30, só usa a internet na madrugada. “É um apagão atrás do outro”, diz a moradora, que faz pós em pedagogia.

A ausência de internet não é um problema exclusivo das vilas isoladas. Em Fonte Boa, com 20 mil habitantes, o serviço também é escasso. Só há 23 clientes com banda larga fixa, e em Juruá, são 18. 

O 3G que chega aos celulares só dá para compartilhar textos —vídeos, nem pensar. Segundo a Anatel, as operadores são obrigadas a cobrir 80% da área dos municípios com internet móvel.

Governada pelo clã dos Lisboa, que se revezam no poder há anos, Fonte Boa é um cemitério de obras inacabadas.

Uma delas, levaria para a cidade um campus da UEA (Universidade do Estado do Amazonas). A obra nunca foi concluída e cedeu pelo abandono.

Os problemas não param por aí. O esgoto corre a céu aberto e polui os igarapés. As ruas lembram um “queijo suíço” pela quantidade de buracos e os apagões também são rotina —a energia é gerada por uma usina termelétrica movida a diesel que opera ao lado de casas, banco e hotel e cria um barulho insuportável.

A cidade também perdeu seu aeroporto e deixa circular mototaxistas com passageiros sem capacete. Outro descaso é a presença de um lixão a céu aberto que enche de moscas a casa do pescador Evelton Alves Rodrigues, 36. “A gente aguenta porque não tem para onde ir”, diz.

O prefeito Gilberto Lisboa (PDT), 60, diz que busca recursos para reativar o aeroporto, o campus da UEA e fechar o lixão. “Só não mexo com os mototaxistas para não criar rusga”, afirma.

Os jornalistas Dhiego Maia e Zanone Fraissat viajaram a convite da Unicesumar

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