Carceragem da ditadura, casarão erguido por ex-presidente vai a leilão em SP

Um dia sede do Dops e hoje tombado, imóvel remete à ocupação de Higienópolis

casa do presidente Rodrigues Alves foi sede do Dops durante a ditadura militar e será leiloada Katia Kuwabara/Folhapress

Francesca Angiolillo
São Paulo

​​"A casa de esquina da rua Itacolomi com a Piauí, onde se acha instalado o Dops, a Delegacia de Ordem Política e Social, é uma construção alta, estreita, com jardim cimentado em toda a volta mas com vários canteiros onde foram plantadas samambaias, hortênsias, pequenas palmeiras."

A casa da r. Piauí, 527, já não é a delegacia do Departamento de Ordem Política e Social, cenário de interrogatórios da ditadura descrito no romance "O Nome do Bispo" (1985), de Zulmira Ribeiro Tavares

Desde 2003, quando a Polícia Federal mudou-se para a Lapa, a casa, construída por Rodrigues Alves alguns anos após seu mandato presidencial (1902-1906), está vazia.

Neste mês, porém, seu destino pode ser redefinido. No dia 19, o casarão, remanescente entristecido do passado cafeicultor de São Paulo e da primeira ocupação de Higienópolis (região central), será leiloado na sede paulistana do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)

O lance inicial do leilão é de R$ 14.870.000, e os proventos integrarão o Fundo do Regime Geral da Previdência Social (FRGPS), do qual saem todos os benefícios de responsabilidade do órgão federal.

A "grade alta de ferro trabalhado" recordada mais adiante na cena citada continua lá. 

E deve permanecer, pois a casa foi tombada em 2012 pelo Conpresp, órgão municipal do patrimônio, que determinou sua preservação integral —lambris, vitral e a delicada serralheria em estilo art-nouveau incluídos— como "exemplar de moradia abastada do início do século 20".

Além de centro de interrogatório e carceragem que abrigou nomes famosos do noticiário policial, a casa foi cogitada, ao longo de seu século de existência, para outros fins.

Talvez ela hoje não estivesse nem de pé, não fosse um acidente econômico. Em 1990, a casa, que ocupa um terreno de 2.640 m2 numa região valorizada pelo mercado, foi vendida pelo INSS para a construtora Encol.

A construtora, no entanto, quebrou sem terminar de pagar pelo imóvel, que, por, isso retornou para o patrimônio de quase 5.800 imóveis que a autarquia tem em todo o país. 

A maioria foi adquirida por antigos institutos que viriam a compor o INSS e hoje parecem ser mais um problema do que uma solução para um órgão que precisa de liquidez.

Em 2007, considerou-se instalar ali um museu de arquitetura, mas as negociações não avançaram. Àquela altura, qualquer venda de imóvel do INSS era por licitação. 

Desde 2008, os imóveis que o INSS não ocupa podem ser leiloados para alimentar o FRGPS, desde que nenhum outro órgão público se interesse na aquisição. 

Interesse, um dia, houve. Rogério Sottili, hoje diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, era secretário de Direitos Humanos na gestão Fernando Haddad (2013-2016) e queria criar um centro de educação e um museu dedicados ao tema de sua pasta. 

No final de 2013, Sottili foi a Brasília para tentar adquirir uma propriedade —ele sabia que órgãos federais tinham imóveis ociosos que poderiam servir para dar forma a seus planos. 

No Ministério da Previdência, foi recebido pelo então secretário-executivo Carlos Gabas, que "apresentou na hora alguns imóveis". Entre eles, estava o "imóvel da PF", que, por sua história, acenou com significado especial para Sottili.

Sottili diz que o preço era irrisório —ele calcula que fosse algo em torno de R$ 2 milhões, pois "podia comprar até com o orçamento da secretaria", a serem pagos em 200 meses. Comprometeu-se com o prefeito a buscar os fundos para realizar seu projeto. 

Pouco depois, porém, em 2014, a prefeitura anunciou a estratégia de saldar parte da dívida do INSS junto ao Instituto de Previdência Municipal (Iprem) por meio de imóveis.

O plano era que as propriedades fossem transferidas para o Iprem e comprados pelo mesmo valor pela prefeitura —em um primeiro momento, com o fim de enfrentar o déficit habitacional da cidade.

Em julho de 2015, a lei municipal 16.121 viria regulamentar o processo, fixando uma lista de dez propriedades, entre as quais a casa da r. Piauí, que seriam repassadas ao Iprem. 

Esses imóveis, diz o texto da lei, poderiam ser usados para programas de habitação popular, educação, saúde, cultura —e direitos humanos.

O primeiro lote transferido para a prefeitura, em abril de 2016, tinha quatro imóveis, como a Casa Amarela, na r. da Consolação, reivindicada por artistas que a ocupavam. Mas não a casa da r. Piauí.

Sottili diz que tentou obter o imóvel "até o fim do mandato". Conta ainda que a Universidade Mackenzie, vizinha do antigo casarão, havia manifestado interesse no projeto. 

O interesse, todo ele, esmaeceu com o tempo, como o azul e branco das fachadas.

É certo que o tombamento restringe, em termos práticos, as atividades que se poderiam implantar no local. A casa, se não está arruinada, certamente requer restauro, que custaria tempo e dinheiro.

Veio a mudança de gestão, e nenhum outro órgão julgou proveitoso ocupá-la.

A descrição vívida feita por Zulmira Ribeiro Tavares foi trazida da própria experiência da escritora, morta aos 88 anos no mês passado

Ela, como tantos outros, inclusive o protagonista quatrocentão decadente de "O Nome do Bispo", teve de ir à sede do temido Dops prestar depoimento durante a ditadura.

Sabe-se lá o que então viram as "rechonchudas figurazinhas infantis aladas devorando cachos de uvas" e outras decorações que espiam, do alto teto, quem ali entra.

Hoje elas só contemplam, na penumbra filtrada pelos vitrais coloridos, os móveis deixados pela polícia e alguns equipamentos que servem para dar conforto aos seguranças que dia e noite vigiam a casa com a ajuda da cadela Rosa.

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