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Roberto Leher

Pequeno círculo de poder celebrou fogo no Museu Nacional

Em artigo à Folha, reitor da UFRJ rebate críticas e fala em reconstrução

Roberto Leher, reitor da UFRJ
Roberto Leher, reitor da UFRJ - Zo Guimarães/Folhapress
Roberto Leher
Rio de Janeiro

As imagens do incêndio do Museu Nacional (MN) provocaram dor e indignação em todas as pessoas que amam a cultura, a ciência e a educação. Mais do que um acervo maravilhoso de 20 milhões de itens, cada coleção foi organizada a partir de muita pesquisa, expedições, vivências com povos originários e exaustivo trabalho de laboratório.

O mundo da ciência internacional, chefes de Estado e governo e os maiores museus do planeta expressaram seu pesar de modo vívido: ‘nossos corações estão rasgados’. No Brasil, um pequeno círculo de poder, parte dele localizado no topo da pirâmide financeira, ao contrário, celebrou intimamente o acontecimento, pois viu no drama uma oportunidade de converter os museus científicos ao controle da indústria do entretenimento capaz de auferir lucros.

Refletindo o espírito do tempo, um estranho consórcio entre certa imprensa e a direita fundamentalista viu no acontecimento a chance de revisitar a Guerra Fria, imputando à concepção de mundo de esquerda do reitor a determinação da causa do incêndio, tudo isso, antes do laudo pericial da Polícia Federal. 

Em reuniões palacianas, em sintonia com o irracionalismo em curso no país, aqueles círculos dedicaram-se a empreender forte ofensiva para desestabilizar a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e seus dirigentes, supondo equivocadamente que, com isso, a opinião pública passaria a apoiar a conversão mercantil das instituições museais. 

Todos os grandes museus construídos recentemente na perspectiva mercantil acabaram custando, no mínimo, o dobro do que o planejado, alguns sequer foram concluídos. A afirmação de que a UFRJ é manipulada partidariamente foi recebida com indignação por sua comunidade, sempre zelosa com interesses particularistas hostis à liberdade científica.

Entretanto, a simbiose entre o baronato do bloco de poder e os subterrâneos de cariz fascista das mídias virtuais não pode deixar de interpelar os rumos da democracia no país. Em editorial no dia 17 de setembro, o jornal O Globo ofendeu profundamente a ciência brasileira, ao chamar a UFRJ e a Universidade Estadual do Rio de Janeiro de instituições falidas.

A causa da falência seria má gestão, exemplificada pelos gastos com pessoal. Para induzir o leitor a aderir à sua narrativa o editorial afirmou que a UFRJ gastava demais com folha de pessoal, incluindo os custos com aposentados e pensionistas. Todos os que trabalham com orçamento sabem que estes gastos deveriam ser contabilizados em rubrica à parte, pois envolve recursos lastreados pelo regime da previdência e, por isso, a OCDE exclui de sua metodologia de gastos educacionais. 

Muitas publicações chegaram a criticar a UFRJ por supostamente ter recusado, na década de 1990, uma oferta de US$ 80 milhões do Banco Mundial, informação desmentida em nota oficial pelo próprio banco. Uma pesquisa breve sobre a situação do patrimônio cultural brasileiro e das instituições museais com acervos de valor histórico e científico confirmará o que a UFRJ vem alertando de modo sistemático: inexiste qualquer item do orçamento da União dedicado às edificações tombadas, pertencentes às universidades federais e às unidades museais, nem mesmo no MinC, ao qual está vinculado o Iphan. 

Quando os orçamentos de custeio e de capital das universidades são decrescentes, o quadro obviamente piora de modo preocupante. Em 2014, o orçamento da UFRJ era de R$ 434 milhões; este ano, foi de R$ 388 milhões. E as verbas de investimentos (novos equipamentos, edificações) caíram de R$ 52 milhões, há quatro anos, para R$ 6 milhões em 2018. 

Foi nesse quadro de profunda falta de recursos que a UFRJ teve de buscar meios para celebrar, com a grandiosidade merecida, os 200 anos do Museu Nacional. Três grandes metas foram estabelecidas: reforma estrutural do prédio, incluindo prevenção de incêndio; deslocamento para novas edificações de todos os laboratórios, atividades administrativas, e a realização da maior exposição de sua história, visto que todo o palácio estaria liberado para tal fim.

O ritmo de trabalho dos pesquisadores, técnicos-administrativos e estudantes nesse período foi febril. Contudo, entre 2015 e 2017, nem o MinC, nem o MEC aportaram recursos para a celebração. O trabalho no parlamento resultou em uma emenda de bancada de R$ 20 milhões, mas, novamente, o governo não liberou os recursos. A UFRJ não esmoreceu.

Junto com a Associação Amigos do Museu Nacional (SAMN), elaborou seis projetos para a Lei Rouanet, um deles para prevenção de incêndio, totalizando R$ 17,6 milhões. Mas o setor empresarial não se interessou. Houve apenas a captação para a realização de uma exposição, de R$ 1 milhão. A reitoria, prevendo as dificuldades, trabalhou com a SAMN e a direção do MN um ambicioso projeto com o BNDES, abrangendo a reforma estrutural, prevenção de incêndio e retirada das atividades acadêmicas e administrativas para liberar o prédio para exposições.

Uma excelente parceria possibilitou um projeto de R$ 21 milhões. Contudo, infelizmente, os recursos não chegaram a tempo de evitar o dramático acontecimento. A UFRJ e o MEC têm um compromisso com o Brasil. A reconstrução já está em curso. Reforço estrutural, cobertura e busca de acervos ainda existentes nos escombros. Ao mesmo tempo, novas expedições e pesquisas acontecerão para buscar acervos perdidos. Missões internacionais estão buscando doações, empréstimos e parcerias com as melhores instituições do mundo. No MN existem dois milhões de itens não afetados pelo incêndio de extrema importância científica, pesquisados pelos melhores programas de pós-graduação.

A instituição é referência internacional em Antropologia Social, Zoologia, Arqueologia, Botânica, Geociências e Linguística. Em reunião com mais de trinta deputados da bancada federal do Rio de Janeiro, todos manifestaram apoio à criação de nova emenda parlamentar, agora impositiva, para construir uma nova e moderna edificação.

Muitos governos internacionais se dispuseram a contribuir. A próxima Lei Orçamentária deve prever recursos para iniciarmos novo projeto e as primeiras etapas da construção até o final de 2019. A UFRJ tem expectativa de que o terrível acontecimento permita a inclusão de recursos do MEC e do MinC, especificamente, para a manutenção de prédios tombados e direcionados à ciência e à cultura. Como política permanente, voltada para todas as universidades públicas. E mais: que a tragédia eduque os que possuem condições econômicas para que olhem e apoiem os museus de ciências e cultura. 

O Museu Nacional vive. No seu hall de entrada está exposto o maior e mais pesado meteorito caído e encontrado em terras brasileiras, o Bendegó, encontrado no sertão baiano, em 1784. Foi uma das peças que resistiram ao incêndio e permanece aos olhos de quem se aproxima do edifício. A sua têmpera nos serve de inspiração.

Roberto Leher
Reitor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

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