Prefeitura paga R$ 13 mi por vagas ociosas em abrigos 'VIP' de São Paulo

Sem-teto que deixaram albergues reclamam de furtos e pouca comida

Mariana Zylberkan
São Paulo

​​Sem ter onde morar há três anos, o mineiro José Marques Soares Guimarães, 37, viu na inauguração do CTA (Centro Temporário de Acolhimento) Prates, no fim do ano passado, uma chance de trocar as noites nas calçadas por um abrigo na cidade de São Paulo. 

Dias depois, porém, ele desistiu do acolhimento e voltou a dormir na praça da Sé. “Na primeira noite, roubaram o único par de tênis que eu tinha. Saí de lá a pé, e a polícia ainda me parou porque estava descalço”, diz. 

Apesar do visível aumento da população de rua na cidade, uma em cada três vagas disponibilizadas em abrigos com status de VIP está ociosa. São 19 unidades em toda a cidade, inauguradas pelo então prefeito João Doria (PSDB) no ano passado e hoje sob a gestão do também tucano Bruno Covas.

Problemas como furtos, pouca comida e desavenças entre usuários têm sido relatados pelos sem-teto que resistem a aceitar o acolhimento nos novos endereços, inaugurados em tempo recorde e sem custos ao município a partir de doações feitas por empresas privadas. 

Apesar das doações para a montagem dos abrigos, os locais são mantidos com repasses mensais do município às entidades sociais que os administram. Em um ano, a gestão tucana desembolsou R$ 38,4 milhões para manter os endereços, sendo que um terço desse valor, R$ 13 milhões, foi destinado às 218,7 mil vagas que não foram ocupadas por moradores de rua. O número é referente ao acumulado de um ano de cerca de 2.000 vagas oferecidas diariamente em todos os 19 endereços. Além dos CTAs, a rede assistencial municipal dispõe de 225,3 mil vagas em outros tipos de abrigo por dia.

O trabalho de encaminhar moradores de rua para abrigos, porém, não depende apenas da qualidade desses espaços. A prefeitura precisa convencer essas pessoas a passar a noite nos locais fechados e muitas vezes encontra resistência, já que nas ruas eles têm liberdade de horários e regras e farta oferta de comida oferecida por igrejas e ONGs, por exemplo.

Mesmo nos dias de frio, os assistentes sociais não podem obrigá-los a aceitar o acolhimento. Diante da recusa, eles registram os dados que conseguem obter da pessoa abordada, como nome, RG e filiação, em uma ficha que depois vai abastecer a base de dados da prefeitura. ​Intervenção mais incisiva se dá apenas em casos extremos, quando a pessoa apresenta sintomas graves de saúde, como dificuldade para respirar e falta de consciência.

Hoje, diante dos números de vagas ociosas em um ano, o secretário de assistência social, Filipe Sabará, faz um balanço positivo, já que 65% delas foram preenchidas em um ano. “A administração está respondendo à altura da demanda por mais vagas de abrigos para a população sem-teto, que não para de crescer na cidade.”

Para atingir percentual maior de ocupação, segundo o secretário, é preciso de tempo para consolidar a nova cultura de acolhimento entre os moradores de rua, acostumados a rechaçar abrigos públicos. “Um ano é pouco tempo para mudar a cultura de acolhimento em uma cidade como São Paulo.” 

A frequência de usuários também demorou a engrenar e passou a ser significativa somente a partir de novembro, apesar de a maioria dos CTAs ter sido entregue no primeiro semestre do ano passado.

Nos primeiros seis meses de 2017, a ocupação registrada foi menos da metade da capacidade nos CTAs Aricanduva, Brás, Brigadeiro Galvão, Butantã e Nove Julho. O último endereço foi destinado exclusivamente a receber famílias que moravam na praça 14 Bis, na região central, alvo da primeira ação do programa Cidade Linda, destinado à zeladoria na cidade.

Atual morador de um abrigo municipal, Helder Penha, 40, tem más lembranças do tempo que morou no CTA Mooca. Ele conta que, em dezembro do ano passado, o abrigo ficou 12 dias sem água e, por isso, organizou um abaixo-assinado na porta do banheiro para exigir a retomada do abastecimento. “Vivemos um caos. Foi um desrespeito muito grande.”

Outra reclamação constante diz respeito à comida. Wellington Luciano dos Santos, 29, diz que prefere cozinhar suas refeições em uma cozinha improvisada com álcool em gel no largo São Francisco, na região central, do que comer no CTA Anhangabaú, onde só vai para tomar banho. “A marmita vem pouca e fria”, diz ele, enquanto usava um balde para descongelar um peru inteiro. 

O secretário municipal diz que a comida oferecida nos CTAs é padronizada e que a oferta de doações de refeições nas ruas, em pontos de concentração de sem-teto, atrapalha o trabalho de acolhimento da prefeitura. “A pessoa sabe que terá comida e recusa ir para o abrigo.”

Como os CTAs são terceirizados, assim como os demais equipamentos de assistência social na cidade, cabe à prefeitura fiscalizar os serviços. De acordo com a pasta, o controle de frequência de usuários é feito pelas próprias entidades administradoras, responsáveis por abastecer um sistema da prefeitura com os nomes dos sem-teto que dormem nos abrigos VIP diariamente. 

A resistência de moradores de rua aos CTAs é visível aos frequentadores dos endereços, que relatam constantemente se depararem com camas vazias quando conseguem uma vaga de pernoite em endereços concorridos, como o CTA Anhangabaú, próximo a pontos de concentração de sem-teto. 

As vagas ociosas eram evidentes, inclusive, durante o período recente de outono e inverno, quando a temperatura cai e a busca por acolhimento aumenta. Nesses casos, sem-teto contaram terem preferido dormir na rua diante da dificuldade em conseguir o encaminhamento – papel distribuído por equipes da Secretaria de Assistência Social que circulam por pontos de maior concentração de moradores de rua. 

Os papéis são distribuídos conforme a quantidade de vagas disponíveis nos abrigos e, sem a autorização, quem bate na porta é orientado a procurar outro lugar.

A medida é de praxe nos abrigos municipais e foi mantida pela prefeitura nos meses frios deste ano. Dessa forma, a entrada era proibida a quem batesse na porta dos CTAs, sem ter em mão a devida autorização, apesar das baixas temperaturas. A exigência, segundo a pasta, é necessária para organizar o acolhimento. 

A fiscalização das vagas ocupadas em CTAs é feita a partir de visitas semanais de funcionários da prefeitura para averiguar se o número de usuários computados naquele dia corresponde à realidade. 

Todo ano, as entidades incluem a frequência de usuários na prestação de contas e têm que devolver à prefeitura o valor recebido pelas vagas que não foram utilizadas. 

Sabará diz que a fiscalização é eficiente, apesar de contar com um efetivo de cerca de 800 funcionários para avaliar mais de 1.300 endereços em toda capital. 

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