Descrição de chapéu Dias Melhores

Casal de músicos cegos se apresenta no escuro e cuida do filho pelos sons

Criança é a única que enxerga na casa, em Florianópolis; concerto da dupla tem plateia vendada

 
Matheus Alves
Florianópolis

​Fernanda Rosa, 37, participava do coral da Universidade Estadual de Santa Catarina, em Florianópolis, junto com Mateus Costa, 42.

Não sabiam da existência um do outro. “Porque deficientes visuais dificilmente conseguem se ver”, brinca Fernanda. Foram apresentados por uma amiga em 2009, após um ano cantando juntos.

Pouco depois, Fernanda chamou Mateus para “fazer um som”. A expressão, explica ele, não era só sobre música. “É vamos tomar um café, dar uma volta, vamos pegar um cinema, vamos fazer um filho.” Em alguns meses, estavam morando juntos.

Formaram um duo batizado A Corda em Si, em que ele toca contrabaixo e ela canta. Da união, nasceu também Francisco, de um ano e dois meses, único sem deficiência visual na casa. 

Recentemente, as pernas do berço de Francisco foram cerradas, para que ele conseguisse descer sozinho. Se perde sua chupeta, o bebê ajuda os pais a procurá-la e costuma encontrar antes deles. Às vezes, os pais notam, pela forma como ele para, que está prestando atenção em um avião no céu.

Fernanda e Mateus não nasceram cegos. Desenvolveram a deficiência progressivamente, ela devido ao glaucoma, e ele por causa de retinose pigmentar (doença hereditária e degenerativa), catarata e 11 graus de miopia.

Em Francisco, foram realizados exames, que não identificaram tendência genética para a cegueira.
A diferença entre os pais e o bebê não é dificuldade para a família. Até porque, de acordo com Mateus, “se engana quem pensa que o cego não vê”.

Ele recorda quando tocava em orquestras e “enxergava” o maestro por meio da respiração ritmada dos músicos mais próximos.

“Tudo que toca ou que é descrito para um cego vira uma imagem mental, e ela é visual de certa forma”, explica. “E ela é real, de certa forma”, complementa Fernanda.

 

O casal localiza o filho por sons discretos, como passos ou respiração. Por ora, ele só anda livre dentro de casa. Logo, vão deixá-lo explorar o quintal. Mateus brinca que talvez, então, tenham de colocar um guizo nele. “A cada fase que ele vai crescendo, a gente vai se adaptando”, diz.

O bebê convive com a música desde antes de nascer. Durante a gestação, Fernanda cantou em tributos a Tom Jobim e Chico Buarque. Com 15 dias de vida, só a canção de ninar composta pelo pai parava seu choro. Seus primeiros passos inspiraram uma música da mãe.

De uma audição muito perspicaz, ele já canta afinado notas que copia de Fernanda. Bate nas cordas no contrabaixo como faz Mateus. Gosta muito do som do violão. Imita o barulho do carro, de gravetos quebrando e do que mais lhe chamar atenção. 

Para indicar uma direção, ele aprendeu a movimentar o corpo no que Fernanda chama de “gestos sonoros”.

Além do tempo dedicado ao filho, o casal reserva momentos individuais de estudo e composição. Fernanda também dá aulas particulares de canto. Quando precisam ensaiar juntos, “é o momento da vovó”, diz Mateus.

Em maio, o casal iniciou a turnê Livremente, a primeira desde o nascimento do bebê. O concerto percorreu o interior de Santa Catarina. 

Durante todo o espetáculo, as luzes estão apagadas e os olhos das pessoas sem deficiência visual são cobertos com vendas.

O projeto surgiu após Fernanda e Mateus perceberem que nunca havia outros cegos em suas apresentações.  ​

Durante o novo show, é instalado um piso tátil no local. As ações no palco são narradas ao vivo por um audiodescritor, profissional que transforma as informações visuais em sonoras, ampliando o entendimento da cena. Monitores ajudam os vendados a se orientar.

Fernanda associa a ausência de pessoas com deficiência no teatro com a baixa acessibilidade. “Pegar um ônibus, enfrentar calçadas esburacadas, conseguir descer no ponto e aí chegar lá e não conseguir se mover no espaço é complicado”, diz.

Entre as pessoas sem deficiência visual, Fernanda acredita que o show estimula o respeito e a reflexão sobre os mundos visual e não visual.

Também compara a música “vazia” do baixo e voz com a proposta do show às escuras. “Ela só insinua coisas e a mente humana vai completando, como um desenho cheio de pontinhos”, explica Mateus.

Ao final do concerto, o casal acende as luzes e conversa com a plateia. Muitas pessoas falam da surpresa ao verem a aparência dos dois. 

“No mundo não visual, sou bem mais alto”, brinca Mateus. Fernanda conta sobre uma mulher que, com a mudança de timbre de uma música para a outra, imaginava diferentes rostos para a cantora.

O Livremente foi gravado no dia 30 de setembro, em Florianópolis, para compor o que o casal chama de “o primeiro DVD cego da história”: as imagens foram registradas no escuro. O lançamento está previsto para novembro.

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