Descrição de chapéu Dias Melhores

José Vicente, 73, encontra Rafael, 3, para ensinar a viver sem os braços

Encontro entre gerações é incentivado por hospital de reabilitação de São Paulo

Jairo Marques
São Paulo

Encontros entre pessoas com ampla experiência de vida diante situações extremas de adaptação, como por exemplo, uma má-formação corporal, e pacientes mais jovens, que ainda não sabem lidar inteiramente com sua realidade, têm sido estimulados por uma grande rede de reabilitação de São Paulo.

A iniciativa tem provocado uniões curiosas. Um advogado aposentado de 73 anos, José Vicente de Oliveira Adamo, repassa conhecimento a uma criança de três, Rafael Ribeiro de Matos, e a um adolescente de 16, Victor Nascimento Morcelle. Em comum, os três não possuem os braços por completo.

A iniciativa é informal, mas médicos e outros profissionais da Rede Lucy Montoro, que promovem os encontros, avaliam que o alcance e o poder da troca de conhecimento amplia os horizontes de qualquer processo de reabilitação formal.

“Costumamos subestimar a experiência de um paciente, mas ela tem um amplo poder. Quando você participa as pessoas com uma mesma situação, elas trocam formas de resolver questões do dia a dia, dão soluções umas para as outras. Elas têm o conhecimento prático, que pode ser até mais completo que o que se tenta passar no hospital”, afirma André Sugawara, fisiatra da rede.

Seu Vicente, que teve má-formação fetal pela talidomida, procura passar aos menores tudo o que teve de aprender sozinho. Dá dicas de como cuidar da higiene íntima até como pegar um objeto com mais desenvoltura. 

“É como se eu ganhasse um presente quando eles me dizem que conseguiram fazer algo novo, de maneira independente. Tive muitos complexos na vida, passei por situações muito complicados. Quero que eles tenham uma vida diferente”, diz ele.

O pequeno Rafael, que teve má-formação congênita, precisou apenas de uma “aula” com Vicente para aprender algo que mudou seu cotidiano: desembrulhar doces, balas e bombons.

“Vendo tudo o que o seu Vicente pode fazer, a gente se anima muito com as possibilidades para o nosso filho. A prática de vida que ele tem ensina a gente a ver melhor como será o futuro do Rafael”, declara o pai do garoto, Julio César de Matos, 34.

Para a terapeuta ocupacional Denise Rodrigues Tsukimoto, “às vezes, um paciente tem receio de não conseguir fazer determinada atividade sozinho, como tomar banho, por exemplo. Ele é inseguro. O contato com alguém mais experiente parece potencializar a capacidade e aquele receio limitante diminui muito, facilitando o nosso trabalho.”

O adolescente Victor, que treina para ser atleta paraolímpico da natação, não tem parte dos membros inferiores e também dos superiores. Ele se desloca em uma cadeira de rodas motorizada e mostra entusiasmo com tudo o que aprende com seu Vicente.

“Ele sempre tem uma dica para melhorar o meu dia a dia e isso é sempre bom”, afirma o garoto, que é bastante vaidoso e lida muito bem com sua autoimagem. Ele também repassa para outros pacientes sua forma de cuidar da autoestima.

“Todos os dias, antes de sair de casa, eu me olho no espelho e penso que não tenho motivos para ser alguém triste, que posso fazer muitas coisas, ter uma vida normal. Boto um sorriso no rosto e vou em frente. Isso ajuda muito a enfrentar o preconceito dos outros.”

Os profissionais da rede Lucy afirmam que nem tudo na prática e na experiência de outros pacientes será aproveitado ou aprovado dentro do processo de reabilitação.

“Para tudo é preciso o pensamento crítico. Colocar na mesa, de forma clara, se aquele ensinamento ou referência faz bem ou não, se pode acabar prejudicando em algum aspecto o paciente. Somos vigilantes para não sermos a barreira de desenvolvimento de ninguém, mas tudo com cuidado”, diz Sugawara.

Seu Vicente vai a cada 15 dias fazer preparação física e motora no hospital e para se encontrar com os mais jovens. O trabalho é voluntário e ele nunca se antecipa. Espera que as famílias ou que os próprios paciente se aproximem dele e queiram suas dicas.

“O que procuro fazer é tentar amenizar um pouco certas situações de dificuldade, que vão sempre existir, ensinando o passo a passo para conseguir desenvolver uma tarefa sozinho usando a boca, os pés, a parte que a pessoa tem do braço. Faço com sensibilidade e amor, as duas palavras mais bonitas que existem”, declara. 

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