Montadas e poderosas, mulheres viram drags e reforçam autoestima

Movimento busca romper com padrões estéticos, mas enfrenta resistência de artistas do meio

Débora Miranda
São Paulo

“Drag é arte. E é para todo o mundo!” A frase é de Pabllo Vittar, uma das drag queens mais bem-sucedidas do mundo, e vem de encontro à tendência —tão recente quanto polêmica— de mulheres em busca de espaço no universo drag. A discussão se dá sob argumentos variados, que basicamente giram em torno de acusações de apropriação cultural.

Mas há também quem não veja sentido em uma mulher se vestir de mulher, ou melhor, de drag, e considere que o movimento, dessa forma, perca a força crítica e o poder de chocar com a montação —como a transformação é conhecida.

“As pessoas acham que drag é homem se vestindo de mulher. Mas é muito mais do que isso. É você conseguir brincar com gênero, você não precisar ser uma coisa só. Drag é arte e não pode ser limitada”, afirma a drag queen, atriz, modelo plus size e maquiadora Bruna Tieme, 21, a Ginger Moon.

O drag king Don Valentim, personagem da estudante Iara Valentim, e a drag queen Ginger Moon, da atriz, modelo plus size e maquiadora Bruna Tieme - Bruno Santos/Folhapress

Para as mulheres ouvidas pela Folha, ser drag representa quebrar paradigmas ligados à feminilidade, à sexualidade e também à autoestima.

“Sempre tive uma personalidade extravagante. Fiz teatro, cantava, já fui da dança. São meios artísticos, mas muito normativos. Eu me sentia sempre destoando”, diz a drag queen e maquiadora Paloma Shizue Cortes Morimoto, 35, a Palloma Maremoto.

“Quando comecei a me montar e a frequentar as festas drag, vi que a minha estranheza e a minha extravagância eram celebradas. E que havia outras pessoas como eu, que também eram um ponto de exclamação social”.

O sentimento de estranheza por não se encaixar em padrões tradicionais é recorrente entre as mulheres drag. “Drag sempre foi marginal. Sou uma mulher gorda, que sempre foi julgada pela sociedade e estou subindo num palco. É um movimento de liberdade que reúne pessoas que foram discriminadas a vida toda. É estranho, mas eu sempre fui estranha”, diz Ginger.

Livrar-se de padrões estéticos e se reconhecer bonita são pontos importantes para as mulheres drag. Muitas são gordas e afirmam que nunca se acharam sensuais antes de se montar. “Uma mulher gorda fazendo striptease no palco é quebrar padrões. A gente vai aprendendo a gostar do nosso corpo e a respeitá-lo”, conta a drag queen, fotógrafa e produtora audiovisual Isabel Cavalcanti, 32, a Greta Dubois, que faz shows burlescos.

A psicóloga e sexóloga Érika Oliveira de Paula Ribeiro, 36, participou do programa “Drag me as a Queen”, do canal E!, que transforma mulheres em drags por um dia.

“Queria ter contato com a feminilidade de outra forma, e o programa me deu muita coragem, de verdade. Quando está montada, você se olha no espelho e vê uma beleza que é sua, mas que é diferente. Você passa por um processo de aceitação”, afirma.

Foram essas questões que atraíram a estudante de artes visuais Iara Valentim, 24, para o mundo drag. Mas, em vez de interpretar uma personagem feminina, optou pelo masculino. Criou Don Valentim e hoje é drag king.

“Tive muitos problemas com símbolos de feminilidade, principalmente depois da minha adolescência, porque eu tentava me encaixar num padrão e não conseguia. Eu associava esses símbolos femininos à repressão”, afirma.

“Só depois de muito tempo conheci o feminismo, me descobri lésbica, militei no movimento LGBT e pude começar a desconstruir isso. E ser drag tem me ajudado a explorar esse universo que é negado às mulheres, mas que vi que são só objetos. Não são coisas de homem, são coisas de gente.”

Nem sempre é fácil para quem está distante da cena drag entender. “As pessoas confundem muito tudo, o tempo todo. Muita gente acha que eu sou homem trans, muita gente acha que eu sou viado afeminado. Muita gente acha que eu sou drag queen. E eu não tenho nenhum problema com isso. É bom pirar a cabeça das pessoas. Quando elas estão em equilíbrio e confortáveis, ela não desenvolvem, não procuram respostas, não evoluem”, diz Iara.

Apesar de as drags dizerem que a sexualidade não tem relação direta com o movimento, é fato que ele é forte entre o público LGBT. E no que se refere às mulheres drag, há grande variedade nesse sentido, o que, segundo elas, muitas vezes reforça o preconceito. Muitas são lésbicas, mas há bissexuais (e várias se relacionam com homens), pansexuais e heterossexuais. “O meio LGBT ainda é muito machista. E essa é uma das nossas grandes lutas”, diz Palloma.

Salete Campari, que é homem drag, lembra que a ideia de ter mulheres se montando ainda é muito nova —a tendência começou a crescer por volta de 2015. “Eu vejo com muitos bons olhos as mulheres, tanto que imito elas. A mulher tem que ser valorizada, sempre. Agora, quando se trata de virar drag queen, não pega muito. A drag queen é o exagero do exagero, e a mulher já é bonita pela própria natureza. A gente não está acostumada a esse personagem, é muito novo mulher drag. Mas elas vão colocar a gente na chinela de longe.”

Fenômeno da TV americana e com fãs no mundo todo, a drag queen RuPaul causou polêmica ao afirmar ao jornal The Guardian, em março, que provavelmente não permitiria em seu programa uma mulher transgênero que já passou por redesignação sexual. “Você pode se identificar como uma mulher, mas tudo muda quando você começa a transformar o seu corpo.”

Ela recuou com as críticas instantâneas. “Toda manhã rezo para deixar de lado tudo o que acho que sei, para que possa ter uma mente aberta e uma nova experiência. Entendo e me arrependo da dor que causei. A comunidade trans é formada por heróis do nosso movimento LGBT. Vocês são meus professores.”

Buba Kore, 23, é mulher trans e se monta. “Além de ser trans, sou negra, e isso gera muito preconceito. As pessoas falam: ‘Nossa, mas você é trans e vai ser drag também?’. Todo mundo julga uma mulher trans. Tem também aqueles que acham que porque é trans faz programa. Não é bem assim. Trans pode ocupar qualquer lugar que ela quiser.”

Buba diz que tem se montado pouco, ultimamente, mas que o processo a ajudou a conquistar segurança, especialmente artística. “Comigo funcionou um pouco diferente, porque toda a insegurança que eu tinha com o meu corpo eu já tinha superado quando passei a fazer drag. Já tinha começado a me cuidar e a ser do jeito que eu sempre quis ser. Mas me montar fez com que eu ficasse mais segura de mim, não como pessoa, mas como artista.”

Diferentemente de outras drags, Buba decidiu não adotar nome artístico. A mãe, quando ela nasceu, escolheu homenagear a personagem intersexual da novela “Renascer” (Globo, 1993), interpretada por Maria Luisa Mendonça. “Não quis mudar, é diferente e combina comigo. É único e gosto muito disso.

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