"Uma semana antes de morrer ele me chamou. Falou que tinha chegado a hora dele", conta Airton Conceição de Arruda, neto de Antônio Mulato. "Queria que o levassem quando ele não pudesse mais andar. Perguntei com quem ficaria o dinheiro e ele disse: 'Com quem merecer.'"
Mulato, apelido de Antônio Benedito da Conceição, cresceu na comunidade quilombola de Mata Cavalo, na cidade de Nossa Senhora do Livramento, a 50 km de Cuiabá.
Era neto de africanos que foram escravizados no Brasil. Seus pais nasceram quando a Lei do Ventre Livre já havia sido promulgada. Foi Mulato quem liderou a retomada do quilombo Mata Cavalo, que não era reconhecido pelo município.
Mesmo sem saber ler e escrever, fundou a primeira escola da comunidade, em meados de 1940. No lugar, que começou com apenas uma sala, boa parte de seus descendentes pôde estudar, lutando para ter o mesmo direito das crianças brancas. Hoje, uma de suas bisnetas, Gonçalina Eva, 41, é professora lá.
Era Mulato quem reunia a família em datas comemorativas. "A casa dele era de todo mundo", diz Airton. "Ele gostava de cantar cururu, tocar pandeiro. Festa, velório. Ele ia em todos."
Católico, "tirava reza" e ia com frequência a missas. Anualmente participava da lavagem das escadarias da Igreja de São Benedito, a maior do estado. "Ele dava opinião, andava no meio do povo, ajudava na cerimônia", conta o neto.
Lutava para recuperar uma terra de mais de 14 mil hectares que havia sido doada a seus avós após a abolição da escravatura, mas foi tomada "pelos brancos". "Ainda estamos aqui na luta. Era o sonho dele e é o meu também", diz Airton, que é presidente da Câmara Municipal de Livramento.
Morreu de insuficiência renal aos 113, em 15 de setembro. Deixa 9 filhos, 41 netos, 23 bisnetos, 18 trinetos, 3 tataranetos e a luta de resistência de quilombolas em Mato Grosso.
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