Abrigo vira campo de batalha entre moradores de rua de SP e imigrantes venezuelanos

Regras diferentes agravam tensão em unidade municipal, com queixas de agressões e ameaças

pessoas chegam para pernoitar no CTA Butantã
Imigrantes venezuelanos relatam violência em abrigo da Prefeitura de São Paulo - Folhapress
Mariana Zylberkan
São Paulo

Maria Valéria Balera, 28, é alvo constante de homofobia. Alessander Hernandes, 33, já foi ameaçado de morte. Alberto Castillo, 31, acordou no meio da noite sob pancadas. Yanitza Bravo, 32, não dorme há semanas com medo de ser agredida. Os quatro já tiveram os pertences roubados e dizem ser expostos ao abuso de drogas diariamente. 

Todos eles são imigrantes venezuelanos e, em seus relatos, detalham a rotina que beira o insuportável em um abrigo da Prefeitura de São Paulo, onde moram há cerca de dois meses, após terem saído de Roraima por meio do processo de interiorização organizado pelo governo federal.

O dia a dia repleto de agressões e ameaças se dá pelo fato de terem sido abrigados pela gestão do prefeito Bruno Covas (PSDB) em endereço destinado a também receber moradores de rua, no bairro do Butantã, na zona oeste da capital paulista.

Diferentemente dos imigrantes, que buscam acolhimento após terem saído de seu país, a população de rua costuma demandar atenção distinta do poder público, diante da alta incidência de uso de drogas e bebidas alcoólicas, o que remete a uma série de doenças psiquiátricas.

Além disso, os refugiados relatam reações xenófobas à presença deles no abrigo. "Ouvimos o tempo todo que não deveríamos estar ali por sermos de outro país", diz Hernandes. Os demais usuários também se ressentem da ajuda que os refugiados recebem de ONGs e associações porque a ajuda não se estende aos sem-teto na mesma proporção.

Inaugurado em setembro do ano passado, com capacidade para receber 238 pessoas por pernoite, o abrigo acolhe, atualmente, o segundo maior contingente de imigrantes venezuelanos recém-chegados a São Paulo. Cerca de 30 refugiados vivem no local, e, ao todo, 71 já passaram por lá desde abril, quando teve início o processo de interiorização. Apesar da rivalidade, os moradores de rua não encontram dificuldade em encontrar vagas no abrigo, que opera abaixo da lotação máxima. 

Roraima recebeu cerca de 75 mil pedidos de refúgio de venezuelanos de 2015 até o último mês de agosto. A grave crise econômica e política no país vizinho provocou um êxodo que fez o governo brasileiro investir na distribuição de imigrantes pelo país. 

Ao contrário dos moradores de rua, os imigrantes, por serem refugiados, têm direito a passar o dia no albergue e não precisam sair na manhã seguinte e pegar fila no fim da tarde se quiserem pernoitar no endereço novamente.

Essa diferença, segundo os imigrantes, é um dos fatores que transformam o abrigo em um campo de batalhas. "Fazemos rodízio para sair. Enquanto um grupo vai procurar emprego, outro fica para vigiar as malas", diz Maria Valéria Balera, 28, que conta ter tido todos seus pertences roubados alguns dias após chegar. Ela conta que se sente ameaçada por outros ocupantes do abrigo pelo fato de ser homossexual. 

Durante a madrugada, Alberto Castillo, 31, se acostumou a despertar ao ouvir qualquer barulho depois de ter acordado por chutes e socos do seu companheiro de beliche. "Ele não falava nada, apenas me batia. Não reagi porque fiquei com medo de juntar mais gente." No dia seguinte, ele encontrou sua mala encharcada de urina. 

A comerciante Yanitza Bravo, 32, resumiu as noites dos conterrâneos no abrigo em São Paulo: "Dormimos com um olho aberto e outro fechado."

Por ser mais velho, Gregório Muñoz, 47, se comporta como uma espécie de protetor dos conterrâneos e faz a mediação da relação com os demais usuários do abrigo para evitar confrontos. Ele trabalhava em uma mina na Venezuela e conta que veio ao Brasil para se tratar de malária, já que os medicamentos, diz, são controlados pela milícia no país. "Só quero trabalhar e ter a minha casa." 

Secretário municipal de Assistência Social, Filipe Sabará afirmou por meio de nota que a direção do abrigo está disponível para receber queixas dos usuários e reconheceu que há dependentes químicos entre a população de rua abrigada no endereço. Sabará diz que esses casos recebem acompanhamento e, se necessário, são encaminhados para serviços de saúde.

Desde abril, o Ministério do Desenvolvimento Social encaminhou 510 venezuelanos para abrigos na cidade de São Paulo. A maioria (193) foi acolhida em um abrigo em São Mateus, na zona leste, que acabou se transformado em endereço exclusivo para receber esses imigrantes. Os demais foram recebidos por associações religiosas e da sociedade civil.


Os grupos levados ao abrigo no Butantã são os que relatam mais problemas, justamente por dividirem o espaço com outro perfil de pessoas necessitadas de acolhimento. 

Segundo o ministro de Desenvolvimento Social, Alberto Beltrame, a prefeitura não informou problemas em relação ao acolhimento de imigrantes em reunião organizada no início de outubro para tratar do tema. Mas reconheceu a dificuldade em colocar os refugiados em abrigos para moradores de rua. "Essa mistura não é desejável, apesar de ser circunstancial."

O caráter improvisado de recepção dos venezuelanos pela prefeitura é confirmado por uma resposta encaminhada pelo secretário Sabará a questionamentos feitos pela Defensoria Pública da União no início de julho referentes a uma série de reclamações de imigrantes recém-chegados.

Na ocasião, o secretário explicou que "a cidade não teria condições de ter um atendimento específico para a população venezuelana" e que poderia destinar apenas vagas em Centros Temporários de Acolhimento, voltados à população de rua, diante da situação emergencial. 

Abuso de drogas

Além do clima intimidador, os venezuelanos que passam as noites no Butantã afirmam presenciar constantemente uso de drogas dentro do abrigo. 

Marcos (nome fictício), 22, viveu cerca de dois meses no endereço após deixar Roraima em busca de emprego. Logo nos primeiros dias na capital paulista, ele conta ter presenciado ocupantes do albergue consumindo maconha, cocaína e cachaça dentro do quarto. 

Um deles, ele conta, se ofereceu a buscar maconha em troca de R$ 3, o que virou rotina. "Fumava maconha dentro do quarto mesmo. Os funcionários sabiam, mas fingiam que não viam", diz ele, que percorreu a pé metade dos 820 km que separam sua cidade, El Tigre, de Paracaima (RR), na fronteira do Brasil com a Venezuela, no início de janeiro. 

O uso de drogas por imigrantes venezuelanos dentro do abrigo no Butantã foi denunciado pelo Comitê Estadual de Refugidos, da Secretaria Municipal de Justiça, no fim de maio. No documento, o órgão alertava a Secretaria Municipal de Assistência Social que "seis refugiados venezuelanos abrigados no Centro Temporário de Acolhida do Butantã estão usando crack dentro do equipamento".

A denúncia, inclusive, pedia tratamento médico urgente já que os refugiados apresentavam sinais de dependência. 

O secretário Sabará afirmou em nota que tomou conhecimento da denúncia, mas "não foram verificados casos de acolhidos fazendo uso de entorpecentes dentro da unidade". A pasta afirmou que, após a denúncia, intensificou o sistema de vigilância no abrigo. 

O acesso fácil a drogas no abrigo, conta Marcos, dificultou a busca por um emprego. Ele lembra ter presenciado colegas perderem o horário de entrevistas de emprego por estarem sob efeito de entorpecentes. 

Há quatro meses, porém, ele conseguiu alugar um quarto com a namorada em M'Boi Mirim, na zona sul de São Paulo, e afirma estar livre das drogas. 

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