Do largo da Memória ao Paissandu, passeio mapeia história negra em SP

Trajeto criado por três amigos lembra episódios do povo negro esquecidos no centro

O projeto Cartografia Negra, idealizado pelos amigos Carolina Piai, 24, Raissa Albano de Oliveira, 25 e Pedro Alves, 26, faz caminhada pelo Centro de SP - Jardiel Carvalho/Folhapress
São Paulo

Quem caminha nos arredores da rua da Glória, na Liberdade (centro de São Paulo), enfeitada com postes que lembram lanternas orientais, não imagina que está pisando sobre o que foi um cemitério para pessoas pobres, negros, indigentes e condenados à forca.

A maioria das pessoas que descem apressadas na estação Anhangabaú de metrô, pela ladeira da Memória, desconhece que ali ficava o mercado onde se leiloavam escravos até o século 19. 

O mesmo para quem anda no entorno da Sé ou do largo São Francisco, onde fica a Faculdade de Direito da USP. Conforme a cidade se modernizava para se tornar uma das mais importantes do mundo, a história do povo negro em São Paulo foi sendo escondida. 

Quando criança, Raissa Albano de Oliveira, 25, negra e paulistana, nunca ouviu sobre estes lugares. Na faculdade de ciências sociais, ela começou a questionar onde estavam os negros da narrativa oficial da cidade. Foi assim que nasceu a ideia da Cartografia Negra, um projeto que mapeia os pontos históricos do povo negro na capital paulista.   

“Quis contar a história não contada, essa história dos vencidos. Isso surgiu das minhas dúvidas pessoais, quanto a uma parte da história da minha família, da minha herança negra”, conta ela. 

No meio deste ano, Raissa se juntou a outros dois amigos e expandiu o projeto com a Volta Negra, uma caminhada pelo centro que revisita alguns destes pontos.

O passeio gratuito ocorre uma vez por mês, com pessoas que manifestam interesse pela página do grupo no Facebook. O próximo será no sábado (24), quatro dias depois do Dia da Consciência Negra. 

Sem placas, com nomes que foram trocados, a maioria dos eventos e pessoas ligados a essas histórias foram esquecidos. 

É o caso do chafariz de pedra do largo da Misericórdia, projetado e construído pelo engenheiro negro Joaquim Pinto de Oliveira Tebas, em 1792. O local era muito usado pela população negra para buscar água. Alguns discutiam ali maneiras de resistir à escravidão, segundo o grupo. No século 19, ele foi transferido para Santa Cecília. 

“Tem pontos que foram de resistência, onde houve manifestação cultural, onde a população negra morou de fato, antes de ir sendo expulsa do centro, e outros foram pontos de tortura”, explica a jornalista Carolina Piai, 24, integrante do Cartografia Negra.

“No período pós-abolição, a ideia era modernizar São Paulo, para isso era importante apagar esse histórico, que não era uma história moderna, positiva.”

Na região da Sé, marco-zero da cidade, funcionava uma espécie de complexo penal da São Paulo antiga. Até 1865, o largo Sete de Setembro, na parte de trás da catedral, era conhecido como largo do Pelourinho, uma referência à coluna que ficava no local para castigar escravos. Por ali, também ficavam a cadeia, a forca e o quartel. 

A poucas quadras do local, na rua dos Aflitos, fica a capela onde o cabo da Marinha Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, passou a última noite antes de morrer na forca, em 1821.

Condenado por participar de um levante reivindicando salários ao Império, depois de resistir a duas tentativas fracassadas de execução, Chaguinhas virou santo popular e atrai fiéis, que atribuem a ele milagres, até hoje, na Liberdade. 

A pesquisa do grupo percorreu acervo de arquivos públicos, teses e dissertações de universidades, livros e o site Dicionário de Ruas, da Prefeitura de São Paulo. Sempre esbarrando na dificuldade de encontrar documentos oficiais. No caso do Pelourinho, por exemplo, eles encontraram o registro em apenas um mapa que mostrava a cidade de 1800 a 1874. 

“Além da falta de registro, também tem a vontade do governo de apagar essas memórias. O que gente vem tentando fazer também é organizar essas fontes, para que elas estejam consolidadas para o futuro”, diz outro integrante, Pedro Alves, 26, que chegou a cursar história. 

Entre os documentos não-oficiais, como os diários de estudantes do largo São Francisco, o grupo encontrou também a história de Maria Punga. Mulher negra e quituteira, ela era proprietária de um café frequentado pelos jovens a poucos metros das arcadas. 

A caminhada, geralmente, termina na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no largo do Paissandu. O local é conhecido como símbolo de resistência da comunidade negra em São Paulo, com altares onde grande parte dos santos que recebem orações são negros. Construída em 1906, a própria igreja é um símbolo da remoção que aconteceu na virada do século 19 para 20. 

A ideia agora é levar o projeto para dentro das escolas de São Paulo, especialmente as da rede pública. “É uma oportunidade de conscientizar as pessoas de que houve luta, de que houve tortura, de que esses lugares foram reconfigurados para apagar essa história e fingir que não foi tão ruim assim”, diz Raissa. 

“São Paulo seria uma cidadezinha afastada do centro de poder, sem as lavouras de café plantadas pelos escravos, não seria nada perto do que é hoje. Assim como o Brasil sem escravidão não teria conseguido se desenvolver economicamente. Seria outra história, não consigo nem imaginar”, avalia Pedro. 

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