Para líder de vítimas de padres, relação com Deus é disfarce para abusadores

Americano diz que religiosos como João de Deus têm facilidade para obter confiança de vulneráveis

São Paulo

Foram necessários 50 anos para que Tim Lennon, 71, se lembrasse integralmente do que ocorreu na sua infância nos Estados Unidos. Aos 12 anos, o filho de uma tradicional família católica irlandesa foi molestado e estuprado por um padre da sua paróquia.

Nos anos 1990, ele se juntou à associação norte-americana Survivors Network of Those Abused by Priests - Snap (Rede de Sobreviventes de Abusados por Padres, na sigla em inglês). Foi da diretoria por oito anos e hoje é presidente da rede, que reúne cerca de 25 mil sobreviventes nos Estados Unidos e tem participantes em 60 países.

Fundada em 1988, a Snap é referência mundial em casos de abuso sexual por religiosos. A rede organiza grupos de sobreviventes, pressiona por mudanças nas leis americanas e cobra respostas da Igreja Católica. Um dos membros da Snap, Phil Saviano, é retratado no filme “Spotlight: Segredos Revelados”, que ganhou o Oscar em 2016.

Em entrevista por telefone à Folha, Lennon falou sobre os relatos de abuso sexual que atingiram o médium João Teixeira de Faria, 76, o João de Deus, que nega as acusações.

Para o americano, líderes religiosos se aproveitam da sua autoridade para se aproximar dos alvos. “Eles usam a sua posição de poder, como alguém supostamente próximo de Deus, para obter a confiança das vítimas.”

Segundo ele, a fé e o poder que a própria vítima confere ao líder religioso a tornam mais vulnerável. O ativista também conta como reconhecer e denunciar o crime é um passo importante no “processo de cura” e como sofre até hoje as consequências do abuso. “Não é como um braço quebrado, que se regenera. É para a vida toda.”

Tim Lennon, 71, é presidente da Snap, associação fundada em 1988 e que reúne 25 mil pessoas que foram molestadas sexualmente por padres, em 60 países; ele mesmo foi vítima de abuso sexual por um padre quando tinha 12 anos
Tim Lennon, 71, é presidente da Snap, associação fundada em 1988 e que reúne 25 mil pessoas que foram molestadas sexualmente por padres, em 60 países; ele mesmo foi vítima de abuso sexual por um padre quando tinha 12 anos - Reprodução/Facebook

 

Um líder religioso é uma figura de autoridade, como um professor, um parente ou um chefe. Mas quais são as particularidades desse abuso no ambiente religioso? No caso de um padre, um guru ou de João de Deus, as próprias vítimas dão poder para esses indivíduos. E, por isso, elas são mais facilmente controladas. Uma pessoa que não seja crente, um cético, teria menos chances de cair nessa situação. Quando uma pessoa chega vulnerável, por doença ou questões psicológicas, elas dão ainda mais poder ao líder com a esperança de serem curadas. No caso de João de Deus há uma cidade inteira que ajuda a criar esse mito e prestígio.

Como a relação próxima com Deus é usada para cometer os abusos? Primeiro dá autoridade, mas também é um disfarce, uma desculpa. Eles usam sua posição de poder, como alguém supostamente próximo de Deus, para obter a confiança das vítimas. Pedófilos e indivíduos que querem explorar os outros vão para essas instituições onde eles têm acesso a crianças e pessoas vulneráveis. Isso oferece a eles essa oportunidade.

No Brasil, o Código Penal prevê o crime de estupro de vulnerável, quando é voltado contra menores de 14 anos mas também contra pessoas que, por qualquer causa, não podem oferecer resistência. Alguns promotores no Brasil acreditam que isso se aplicaria a parte desses casos. O que o senhor acha? Com certeza. Uma pessoa que está tão vulnerável assim [doente, buscando cura] não tem meios, recursos ou habilidades para lutar contra um abuso. Não só a pessoa está inserida em uma comunidade de fiéis e vive essa crença, mas ela se apega à fé porque tem uma necessidade de cura. 
Quando fui estuprado pelo padre da minha paróquia aos 12 anos, assim como a maioria das vítimas, eu fiquei paralisado, congelei. Não fiz nada, não disse nada, não contei para ninguém e enterrei essas memórias por décadas.

Como João de Deus é considerado muito influente, as mulheres que se apresentam como vítimas dizem que tinham medo de denunciar. Algumas afirmam que temiam que ele se vingasse espiritualmente. Isso é comum? Sim, é trágico, porque os líderes religiosos usam os poderes que a vítima e a comunidade atribuem a eles para intimidar e ameaçar. Nos EUA, quando algumas famílias relataram que seus filhos tinham sido abusados, as igrejas disseram que elas seriam condenadas ao inferno por contar. Um bispo americano chegou a dizer que uma criança de seis anos era provocativa. 

Algumas mulheres dizem que o depoimento aos promotores foi a primeira vez que elas falaram sobre os abusos. O senhor acha que isso pode ser parte do que a Snap chama de “processo de cura” da vítima? Com certeza. É importante dar nome ao crime e ao criminoso. Quando as pessoas são molestadas, elas costumam pensar que foram as únicas vítimas e que a culpa é delas. A denúncia é uma oportunidade de se libertar dessa bagagem, porque a pessoa percebe que não está sozinha. A vítima passa a ver o ato como um crime e entende que não havia nada de errado com ela.
É preciso muita coragem para falar sobre o abuso. E a coragem é um importante elemento no processo de cura. Então conte sua história, converse com as pessoas próximas, busque apoio, seja de um terapeuta, grupo de vítimas ou amigos e parentes. Fale em um local em que você vai receber consolo e conforto.

Como foi para o senhor contar a sua história? Eu não lembrei de nada sobre o abuso por décadas. A memória de algumas partes [do estupro] só vieram depois de 50 anos. 
Quando isso aconteceu, pude usar essa raiva para lutar contra o abuso, o que não pude fazer quando criança. Isso é uma das coisas que me ajudam a ter, digamos, uma vida. Contar a minha história e contá-la frequentemente é uma forma de reagir. 
Isso traz as memórias à tona, se torna parte da sua vida e de quem você é. E depois disso você pode seguir em frente e se curar. Se o abuso nunca é admitido, esse trauma emocional continua a nos afetar sem uma razão aparente. Sou um grande defensor de que as vítimas falem. Não precisa ser em público, pode ser com a família ou amigos próximos. 

Como a religião está ligada a uma comunidade, família e amigos, as pessoas que denunciam às vezes entram em conflito com todo esse grupo. O que o senhor diria para as pessoas quem têm medo de falar por isso? As vítimas precisam focar seu próprio bem-estar e saúde. Respeitar a si próprio é mais importante do que fazer os outros se sentirem bem. Pode ser que algumas pessoas se afastem, mas outros vão respeitar a sua coragem e honestidade. 

Muitas dessas mulheres dizem que é a primeira vez que alguém acredita nas suas histórias. Por que o relato de vítimas de abuso sexual é tantas vezes desacreditado? A cultura da vergonha e humilhação [impostas à vítima] é como o ar que respiramos. Temos que acabar com essa cultura que silencia a vítima e voltar o foco da vergonha e da culpa para o perpetrador e para as instituições que os acobertam. O abuso sexual é muito disseminado e precisa ser uma preocupação de toda a sociedade, não só das vítimas. A sociedade civil precisa assumir responsabilidade, e as autoridades precisam investigar e processar com vigor.

Alguns fiéis não acreditam nos relatos de abuso sexual, outros tendem a separar os atos da pessoa dos seus poderes espirituais. O que o senhor acha disso? Quando há denúncias de abuso, as instituições tendem a proteger o criminoso. Talvez João de Deus não tenha uma instituição formal, como a Igreja Católica, mas a comunidade, os fiéis e a cidade vão prover esse tipo de disfarce, de proteção.

Quais são os impactos do abuso sexual na saúde e na vida da vítima? O trauma do abuso sexual pode aparecer de diversas formas: autoestima baixa, medo, raiva, ansiedade social, depressão, inabilidade de manter relacionamentos duradouros, desconfiança. 
Em diferentes momentos da minha vida eu sofri com todos esses problemas e continuo a carregar o fardo de cerca de metade deles diariamente. Fui casado por muito tempo, e o casamento acabou. 
O impacto de um abuso sexual não é como um braço quebrado, que se regenera. É para a vida toda. Mas de certa forma sou sortudo, porque consegui superar muita coisa.

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