Dobram pedidos de refúgio de cubanos no Brasil após saída do Mais Médicos

Profissionais relatam dificuldades financeiras enquanto buscam meios para permanecer no país

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Brasília

Os últimos dois meses têm sido de espera para a cubana Doraisy Perez. Desempregada desde o fim da participação de Cuba no Mais Médicos, ela aguarda notícias de vagas não preenchidas por brasileiros no programa, distribui currículos e aguarda respostas de empresas.

Médicos cubanos, no aeroporto de Brasília, em fila para embarque em voo fretado pelo governo de Cuba de volta para a ilha - Pedro Ladeira 28.nov.2018/Folhapress

"Não queria voltar, nem tinha como enviar todas as minhas coisas de volta para Cuba", diz ela, que em dezembro entrou com pedido de refúgio para tentar obter documentos, como carteira de trabalho.

Entre os motivos da escolha pelo refúgio, estava o receio de perder em breve o visto temporário devido ao fim do contrato e uma sinalização do então presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), que declarou que daria asilo aos profissionais. "Vivemos uma incerteza. O presidente falou que ia dar asilo para todo mundo, mas até agora não manifestou."

Dois meses após o anúncio da saída de Cuba do Mais Médicos, cubanos que ficaram no Brasil buscam meios de se manter e se regularizar. 

Levantamento feito pela Folha a partir de dados do Conare (Comitê Nacional para Refugiados) aponta aumento nos pedidos de refúgio da nacionalidade após o fim da participação no programa.

Em novembro, foram 321 pedidos. Já em dezembro, foram 400, quase o dobro de alguns dos meses anteriores, quando o número de solicitações variou entre 146 até 257 ao mês. Para comparação, nos últimos dois meses de 2017: 135 e 114 pedidos, respectivamente. 

Questionado, o Conare não informa quanto dos pedidos feitos pelos cubanos são de médicos que atuavam no Mais Médicos. A justificativa é que os casos correm sob sigilo.

Representantes do Ministério da Justiça ouvidos pela Folha, porém, afirmam que o fim dos contratos é um fator a ser considerado nesse cenário.

"O ministério não dá informações sobre casos concretos. Contudo, também não é possível ignorar a realidade fática. É sabido que vários cubanos do Mais Médicos não retornaram e foram tidos como desertores", diz o coordenador do Conare, Bernardo Laferté.

"Por isso pode ser possível inferir que esse aumento tenha correlação com o fim do programa, até porque ocorreu na sequência do rompimento do contrato com Cuba."

Atualmente, a lei afirma que podem ser reconhecidos como refugiados pessoas que entendam serem vítimas de fundado temor de perseguição em razão de raça, religião, nacionalidade e opiniões políticas no seu país de origem.

O pedido é feito à Polícia Federal, que o encaminha ao Conare. Em média, a espera para resposta leva dois anos. Até lá, o simples protocolo já indica alguma proteção. Com ele, o estrangeiro não pode ser considerado em situação irregular nem ser extraditado. Enquanto isso, pode ter acesso a alguns documentos, como a carteira de trabalho. 

Médicos, porém, só podem atuar na profissão se aprovados em exame de revalidação de diploma no Brasil —ainda não há data de quando a próxima prova deve ocorrer.

 

"Muitos nos chamam de traidores. É doloroso ouvir isso de gente do seu próprio país", afirma uma médica cubana que pede para não ser identificada por medo de represálias à família em Cuba.

Segundo ela, a opção por não voltar a Cuba os torna impedidos de entrar no país por oito anos. Um prazo que já era conhecido, diz. 

O problema são as novas dificuldades enfrentadas nos últimos dois meses. Ainda sem emprego, a médica diz sobreviver com cestas básicas doadas pela prefeitura.

Em grupos de Whatsapp e Telegram, a cubana mantém contato com centenas de outros profissionais. A médica diz que assim como ela, seus compatriotas estão desamparados e sem dinheiro para se manter no Brasil.

Apesar do aumento nos pedidos por refúgio, dados do Conare apontam que tem sido baixa as concessões para cubanos nos últimos anos. Até 2017, 60 cubanos viviam no Brasil refugiados. Em 2018, até outubro, 42 obtiveram o reconhecimento desta situação.

Nos últimos oito anos, foram 6.720 pedidos, número que começou a aumentar em 2016, em parte por uma nova rota de cubanos vindos pela Guiana e Roraima. 

Laferté, porém, lembra que boa parte pede o refúgio por segurança e fica no país só de passagem, não sendo mais localizado pelas entidades.

Em dezembro, dados mostram que o maior número de pedidos não veio de Roraima como em outros meses, mas de São Paulo, o que reforça a possibilidade de que o aumento recente esteja associado a outros fatores, como o fim da parceria no Mais Médicos.

Em alguns casos, segundo os médicos, a solicitação de refúgio tem sido feita com apoio de prefeituras e OABs locais, além de associações críticas ao regime de Cuba.

É o caso, por exemplo, da Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos), que lançou um comunicado em novembro dizendo que prestaria assistência gratuita a cubanos que desejassem entrar com pedido de refúgio. 

Para o advogado Carlos Michaelis Jr., membro da comissão de direito médico da OAB-SP, o fato de Bolsonaro ter prometido apoio a cubanos em novembro indica que os pedidos tendem a ser aceitos. 

"Se o próprio presidente diz que deve dar o refúgio, não há como negar", afirma ele, que diz ter apoiado cinco cubanos em dezembro a preencher a solicitação.

Entre médicos, porém, não há essa mesma certeza. Uma médica que entrou com pedido de refúgio em 29 de novembro, e também pede anonimato por medo de represálias, diz que não acreditou e decidiu agir por conta própria.

Assim que soube da saída do programa, ela pegou um dinheiro que havia guardado, pagou o aluguel e seguiu de carona com a prefeitura para São Paulo, onde hoje vive com outros quatro cubanos.

Não sabe, porém, por quanto tempo poderá se sustentar. Desempregada, ela diz que apesar de estar estudando para o Revalida, não sabe como fará pois não tem dinheiro para fazer a prova.

Programa estima que 1.900 médicos cubanos ficaram no Brasil

A discussão sobre a situação dos cubanos após o fim da participação de Cuba no Mais Médicos não se restringe apenas aos pedidos de refúgio e se estende a outras áreas do governo federal.

À Folha, a atual secretária de gestão de trabalho do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, diz estimar que ao menos 1.900 médicos que atuaram no Mais Médicos nos últimos anos tenham ficado no país. 

O cálculo foi feito com base em formulários de cadastro encaminhados por ela a cubanos via Whatsapp e preenchidos pelos profissionais. 

Destes, afirma, cerca de 1.100 são casados com brasileiros ou têm filhos nascidos no país, o que os coloca em situação regular —a reunião familiar é uma das possibilidades previstas na Lei de Migração para concessão de autorização de residência. 

Segundo a Polícia Federal, desde novembro, ao menos 36 médicos cubanos regularizaram sua situação devido a casamento ou filhos brasileiros.

Já os demais estariam sob risco de, em breve, terem seu visto temporário cancelado. A PF diz que os registros estão válidos até que haja comunicado expresso do Ministério da Saúde para cancelamento, o que ainda não ocorreu.

A situação levou a pasta a fazer uma reunião com o Ministério da Justiça para discutir alternativas. Segundo Pinheiro, que já foi crítica à vinda dos profissionais, a ideia é buscar meios de legalizar sua permanência no Brasil e ajudá-los a obter documentos para que possam tentar fazer a prova de revalidação do diploma. 

Ela nega planos de inclusão desses profissionais em versão reformulada do programa Mais Médicos.

"Nossa tentativa de ajudar os médicos desertores é humanitária. Alguns recebiam auxílio-moradia e alimentação e estão com dificuldades. Outros estão sem documentos, e sem isso, não conseguem se inscrever para o Revalida", diz. "O Estado precisa reconhecer que trouxe esses profissionais para cá e que estão sem documentação."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.