Em SP, menos de 3% dos roubos são em casas, onde posse de arma foi facilitada

Há ainda 6% dos casos em comércios; para pró-armas, dado reforça ampliação para porte

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Brasília e São Paulo
No mais populoso estado do país, parcela mínima dos crimes violentos ocorre no interior de casas e comércios. Dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo mostram, por exemplo, que 2,5% dos roubos foram em residências e 5,9% em locais como lojas em 2017.
 
De janeiro a novembro de 2018, período mais recente disponibilizado, foram de 2,3% e 5%, respectivamente. Os percentuais desse crime específico variaram pouco desde 2014, início da série histórica divulgada pelo governo paulista. 
 
Os números põem sob questionamento o alcance do decreto que facilita a posse de armas, editado pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL), para a redução das estatísticas de criminalidade. É nas ruas do estado – onde o cidadão comum não poderá empunhar armas de fogo, caso não tenha o porte– que se dá a maior parte dos crimes: cerca de 80% dos assaltos.

Especialistas contrários à facilitação do armamento afirmam que a maior quantidade de revólveres e pistolas, entre outros, em circulação vai aumentar a violência, pois eles são, tradicionalmente, facilmente desviados para o mercado informal e caem nas mãos de bandidos. Além disso, a possibilidade de reação das vítimas favoreceria desfechos letais em situações de invasão a casas e comércios.

 
Os que advogam pela flexibilização argumentam que a autorização deveria ser mais ampla, ampliando o direito ao porte (andar armado nas ruas), justamente porque parte pequena dos crimes se dá em ambientes fechados.
 
"É um ganho real você contar com a arma para defesa da sua casa, do seu sítio", diz Benê Barbosa, do Movimento Viva Brasil, acrescentando que a liberação do porte – que depende de aprovação do Congresso – agora “é o caminho natural”. O decreto, afirma ele, gerou uma certa decepção por ser visto como tímido. 
 
“Muito provavelmente, vai haver um incentivo [à criminalidade], as taxas já são altas. As forças de segurança sabem disso. Estamos entregando um arsenal de bandeja para o público”, afirma o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, responsável pelo Mapa da Violência no Brasil.
 
No total, houve 295 mil roubos no estado entre janeiro e novembro de 2018. Em 251 casos ou 0,08%, esses ataques acabaram em morte (latrocínios).

Os dados indicam que o desfecho trágico, em geral, está relacionado à possibilidade de a vítima reagir. Policiais militares e civis, que andam armados e muitas vezes oferecem resistência aos roubos, são 10% das vítimas, embora não tenham essa representatividade na população total (civis e militares são 0,3%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

 
O pesquisador em segurança Fabrício Rebelo afirma que os critérios estabelecidos de declaração de efetiva necessidade não deveriam existir para a posse (em casa ou no local de trabalho), mas sim para o porte de arma. "Se determinada área é de risco e esses crimes não acontecem em sua maioria nem em casa nem no comércio, o decreto deu justificativa para o porte. De que adianta o cidadão poder se proteger em casa e no comércio de crimes que ocorrem na rua?"
 
Rebelo diz que o decreto poderia estabelecer critérios para o porte, detalhando trechos do Estatuto do Desarmamento. "Poderia estabelecer a lista de atividades profissionais consideradas de risco. Poderia usar esses critérios de alto índice de criminalidade para demonstração de ameaça à integridade física do cidadão. Mas sempre para o porte", diz. 

Nesta terça (15), ao anunciar a política, o governo não apresentou estudo para justificá-la.

Os dados da Secretaria de Segurança paulista também mostram que, tanto em 2017 quanto em 2018, menos de 0,5% dos assaltos foi dentro de bancos, joalherias ou escolas.
 
Para Jacobo, num episódio de assalto a residência ou comércio, a presença de uma arma de fogo dificilmente serviria para proteger o cidadão. Ele diz que, pela dinâmica padrão desse tipo de crime, o assaltante surpreende a vítima, que não tem o revólver ou a pistola na mão no momento da investida.
 
“Não se deixa a arma na proximidade, para poder pegá-la imediatamente em caso de emergência, até porque ela não pode estar ao alcance de terceiros, como uma criança”, comenta.
 
Outra questão, segundo ele, é que a hipótese de haver uma arma de fogo no imóvel, em vez de afugentar criminosos, acaba servindo de chamariz para eles, que têm interesse em roubá-la.
 
O sociólogo afirma ainda que o governo desconsidera aspectos como o comportamento de um invasor na hipótese de reação da vítima – que é, em geral, mais despreparada para atirar que o algoz. “Quando tem arma de fogo, a bandidagem primeiro dispara e depois pergunta. Há uma série de fatores psicológicos envolvidos, que não foram estudados pela autoridades.”
 
Para o pesquisador Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo), o assaltante, em geral, busca o proveito material e não quer matar sua vítima. “O latrocínio é o roubo que deu errado”, diz. “A própria tentativa de reagir a leva a tomar um tiro. O ideal é não fazer isso, para se manter vivo.”
 
Ao menos 27% dos latrocínios foram dentro de residências e 8% em comércios. A grande maioria (54%), contudo, se deu na rua.

HOMICÍDIOS

Segundo as estatísticas mais recentes da Secretaria de Segurança Pública, referentes aos primeiros sete meses de 2017, 21,7% dos homicídios dolosos (com intenção de matar) registrados em São Paulo ocorreram dentro de casas. 
 
O dado, no entanto, tem de ser analisado conforme o contexto. É que grande parte dos autores é, nesses casos, próximo da vítima e mora com ela.

“Os crimes dentro de casa, em geral, são grandes tragédias familiares, muitas vezes em decorrência da presença de uma arma de fogo”, explica Paes Manso.

 
Ele avalia, com base em estudos, que a ampliação do acesso às armas tende a aumentar a letalidade de conflitos domésticos e a ocorrência de casos de feminicídio e até de suicídio.
 
Em São Paulo, 2,7% das mortes são em locais de comércio e serviços, 3,8% em restaurantes e locais de lazer.

Durante a campanha presidencial, o exemplo dos ataques a áreas isoladas e distantes da polícia, como de fazendas, foi amplamente usado por Bolsonaro para justificar o decreto de facilita o acesso a armas. Cerca de 3,5% dos homicídios acontece nas unidades rurais paulistas. A grande maioria das ocorrências (53%) é em via pública.

 
Conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e ex-diretora da Secretaria Nacional de Segurança Pública (entre 2011 e 2014), a advogada Isabel Figueiredo classifica o decreto como irresponsável, devido aos possíveis impactos no aumento da violência, e como uma “cortina de fumaça”, que desvia a atenção da população de questões efetivamente importantes, a exemplo do sucateamento das polícias e das dificuldades que elas têm de oferecer pronta resposta às demandas do cidadão em situações de emergência.
 
Ela diz que a nova norma tende a aumentar a ocorrência dos homicídios, ante a fluidez com que as armas passam do mercado formal para o clandestino no Brasil.
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