Milícia pagava policiais e agentes da prefeitura do Rio, diz denúncia

Grupo que comanda comunidades na zona oeste agia para obter informações sigilosas

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Rio de Janeiro

Suspeitos de serem integrantes da milícia que comanda comunidades da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro pagavam a policiais e funcionários públicos para obter informações sobre operações e obter alvarás, segundo o Ministério Público.

A denúncia traz ao menos quatro conversas dos suspeitos, gravadas em escutas telefônicas, que indicam relação com servidores públicos, embora os nomes desses agentes não sejam ditos. Entre os órgãos citados estão a prefeitura do Rio, o Inea (Instituto Estadual do Ambiente) e a Polícia Militar, incluindo o Cepam (Comando de Polícia Ambiental da PM).

Em uma operação nesta terça-feira (22), a Promotoria prendeu cinco acusados de chefiarem ou fazerem parte dessa organização criminosa, que atua na região das comunidades Rio das Pedras e Muzema e pode estar ligada à morte da vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes. Outros oito continuam foragidos.

"O cara chamou aqui e falou que o Beto Bomba falou aqui que amanhã vai ter operação. Pediu pra tirar a escada aqui, pediu pra ninguém trabalhar aqui na obra", diz um dos acusados em uma das conversas.

Ligação em 6.nov.2018

Voz masculina: Fala cara.

Francisco: Aí, o cara chamou aqui e falou que o Beto Bomba falou aqui que amanhã vai ter operação. Pediu pra tirar a escada aqui, pediu pra ninguém trabalhar aqui na obra.

Voz masculina: Eu nem tô aí em Rio das Pedras, eu tô na Tijuquinha.

Francisco: Eu tô te avisando.

Voz masculina: Mas é em Rio das Pedras ou Tijuquinha?

Francisco: Eu não sei, eu tô aqui, ele pediu pra não trabalhar porque ia ter operação aqui em Rio das Pedras, polícia, a porra toda.

Voz masculina: Tá bom.

Francisco: Quem falou foi o cara aqui, que o Beto Bomba falou pra ele, chamou ele e falou pra ninguém trabalhar aqui.

Ele se refere a Jorge Alberto Moreth, que é presidente da associação de moradores de Rio das Pedras e segundo a Promotoria tem informações privilegiadas de operações policiais realizadas na região.

Foragido, ele é apontado como integrante do grupo ao menos desde 2008 pela CPI das Milícias.

A intenção dos alertas é evitar complicações nos negócios imobiliários ilegais exercidos pelo bando, que costuma invadir terrenos vazios, construir as casas (principalmente durante a noite) e vendê-las ou alugá-las para a população.

Às vezes eles abrigam moradores antes mesmo da conclusão das obras, para dificultar intervenções do poder público, afirmou a promotora Simone Sibilio, coordenadora do Gaeco, grupo do Ministério Público de combate ao crime organizado responsável pela operação.

Dos 13 acusados na denúncia, porém, só dois são imputados no crime de corrupção ativa: Manoel de Brito Batista, o "Cabelo", preso e apontado como espécie de gerente armado do bando, e o foragido Fábio Campelo Lima, que seria um dos contadores, responsável pela abertura de firmas em nome de “laranjas”.

Escutas mostram que ambos combinaram o pagamento de R$ 3.000 a um funcionário da prefeitura do Rio em outubro de 2018, em troca da regularização e liberação para o funcionamento de uma das empresas de material de construção vinculada à organização criminosa.

"Só é pra parar [a obra] quando eu falar. Sou eu que dou o negócio pro homem e vocês sabem mais do que eu, que levo o negócio pro homem? Eu sei quando vem, pô", Manoel Batista diz em outra conversa gravada, também em outubro.

Ligação em 15.out.2018

Manoel: Tirou os meninos de lá por que, lá do coisa?

Antonio: Não tá batendo polícia lá.

Manoel: Que tá batendo polícia, pô.

Antonio: Oi.Manoel: Tá batendo polícia aonde?

Antonio: Não tava um carro da polícia lá.

Manoel: Foi por causa do carro de som, cara, tudo gente amiga, os malucos tudo amigo cara.

Antonio: Tá.

Manoel: Teve um Coroa lá no meio da rua quebrando concreto, eu já falei pra vocês, só é pra parar quando eu falar. Sou eu que dou o negócio pro homem e vocês sabem mais do que eu, eu que levo o negócio pro homem? Eu sei quando vem pô.

Ligação em 7.nov.2018

Manoel: Amanhã, o cara avisou lá do Cepam [Comando de Polícia Ambiental da PM].

Voz masculina: Ham?

Manoel: Acha que vai ter alguma coisa pra cá, mas não tem certeza, não.

Voz masculina: E aí?

Manoel: Pode trabalhar, mas fica de olho, entendeu.

Voz masculina: Mas e esses caminhão tudo aí.

Manoel: Não, ele falou que não tem muita certeza, não, porque não tem como ele saber porque eles falam que vão pra um lugar e depois vão pra outro, entendeu.

Voz masculina: Disse que eles foram em Rio das Pedras hoje, será que vão lá de novo?

Manoel: Falaram que, ele tem quase certeza que não é pra Muzema, é pro Rio das Pedras, entendeu.

Voz masculina: Amanhã, né?

Manoel: É, to falando pra você ficar de olho.

Ligação em 7.nov.2018

Manoel: Tá sabendo que tem alguma coisa amanhã?

Bruno: Não, não to sabendo, não.

Manoel: Acabou de me ligar aqui que vai ter.

Bruno: Aonde?

Manoel: Muzema e Rio das Pedras, falou que não é, é pica, hein.

Bruno: O quê?

Manoel: Falou que é Inea [Instituto Estadual do Ambiente] e prefeitura.

Bruno: Eu não aguento, não, mano.

Manoel: Inea e prefeitura, falou que os cara são do caralho.

Bruno: É?

Manoel: Hum, hum, eu nem sei o que eu faço.

Bruno: Não aguenta o coração mais, não, na moral

Manoel: E aí, procura ver se é verdade mesmo. 

Outras gravações também mostram ameaças dos milicianos contra moradores de Rio das Pedras que não respeitam ordens do grupo ou não pagam o aluguel de imóveis e taxas cobradas ilegalmente.

Ligação em 25.out.2018

Pirata: Oi.

Manoel: Vai lá em frente a loja do João lá, tem um carro parado tá atrapalhando o caminhão, entendeu. Não tem nem uma saída, eu tô aqui na Barra. Vai lá, se o carro tiver lá no meio, leva a empilhadeira e tira ele do meio lá e taca fogo nele.

Pirata: De frente do depósito do?

Manoel: Lá em frente o João da Domini.

Pirata: Tá, valeu.

Ligação em 5.nov.2018

Manoel: Se ele não pagar o aluguel hoje, amanhã é pra travar não deixar ela entrar não, tá.

Voz masculina: A Laila já pagou, o 402 já pagou Manuel, não pagou não, não pagou não, tá sem pagar mesmo.

Manoel: Se ela não pagar hoje, amanhã não é pra deixar ela entrar não, tá.

Voz masculina: E o Donato, não pagou também não ou já pagou?

Manoel: Qual é o apartamento dele?

Voz masculina: 302.

Manoel: Tia do Pingo, então avisa aí os dois, se não pagar hoje amanhã de noite não entra ninguém mais se não pagar.

Ligação em 11.nov.2018

Manoel: Fura os pneus dele.

Voz masculina: Lá pra duas horas eu vou furar.

Manoel: Fura logo.

Voz masculina: Esse maluco aqui, uma vez eu mandei ele tirar, ele tirou e hoje botou de novo.

Manoel: Tô vendo na câmera aqui, tá ouvindo?

Voz masculina: Ham?

Manoel: Fura os pneus e fecha o portão, fura só dois.(...)

Manoel: Fura os pneus tudinho.(...)

Voz masculina: Os caras tão enchendo de carro aqui, é pra furar tudo?  

Manoel: Agora tu dá mole, cobra um dinheiro pra botar aí em cima, dez reais, vinte reais.

Voz masculina: Risos.

Manoel: Vai, fura cara, deixa de ser medroso, eu to te vendo, tu tá com medo. 

Ligação em 15.nov.2018

Manoel: Eu tenho oito apartamentos naquele prédio, o resto é tudo do Adriano e do Mauricio, entendeu. Você procura ele e fala com ele, entendeu, não adianta ficar me mandando mensagem, e você fala pro João que o Aurélio acabou de me falar aqui que ele falou que vai cortar os cabos lá no Pinheiro. Se ele cortar, eu vou cortar os dois braços dele e as duas pernas.(...)

Manoel: Se ele cortar os cabos meus lá, vai ser diferente, porque eu vou cortar as duas pernas dele e os dois braços.

Além da exploração ilegal de imóveis, do pagamento de propina a agentes públicos e da extorsão de moradores e comerciantes, os suspeitos são acusados de atividades como receptação de carga roubada, posse e porte ilegal de arma, agiotagem, ligações clandestinas de água e energia e uso da força para intimidação.

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