A gente não tem que recuar, diz deputada que usou decote em solenidade de posse

A pedetista Ana Paula da Silva foi chamada de daputada e trabalhadora do cabaré

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Curitiba

A deputada Ana Paula da Silva (PDT) chegou a pensar que seu traje de posse, na Assembleia de Santa Catarina, ia provocar reações por ser vermelho –uma cor estigmatizada nas últimas eleições. Mas foi o decote do macacão, comprado especialmente para a ocasião, que causou furor na internet, e fez com que centenas de pessoas a chamassem de “daputada”, “trabalhadora do cabaré” e questionassem “a quantos ela tinha dado” para se eleger.

A deputada estadual Ana Paula da Silva durante a posse em SC - Luis Debiasi/Agência AL

Nas primeiras horas após os comentários, “não tinha um músculo ou osso que não doesse”, contou Paulinha, como é conhecida, à Folha.

A parlamentar, de 43 anos, que foi prefeita de Bombinhas (SC) por dois mandatos e se elegeu com 51 mil votos, defendeu a escolha do traje e atribuiu a onda de ataques ao machismo.

Ela pretende processar autores de comentários ofensivos. Em nota, a Assembleia informou que o decote não caracterizou quebra de decoro e repudiou os ataques.

 

Tudo bem, deputada? [risos] Tudo bem; estou melhor agora. Agora o pior já passou. Mas eu vou te dizer: nenhum ser humano consegue manter a sanidade diante de um processo de agressão em nível nacional. Apanhar desse jeito não é fácil. Ainda mais quando você não prevê, não imagina.

A sra. não imaginava, então, que sua roupa ia causar tamanha repercussão? Nunca, jamais. Por duas razões: primeiro, porque fui prefeita por seis anos, concluí meu trabalho com grande aprovação, e jamais fui julgada ou passei por uma situação constrangedora durante o exercício do meu mandato. E segundo, porque, alguns anos atrás, quando eu comecei um processo de empoderamento íntimo, porque é uma coisa sua consigo mesma, eu decidi que jamais ia me violentar por causa da vontade de outras pessoas, ou me sujeitar a conveniências. Claro, dentro do que é aceitável. 

Como foi a escolha da roupa? Eu eventualmente uso um decote, um vestido mais justo, uma transparência. E também, eventualmente, saio de casa de jeans e moletom, porque nós somos assim. Nós, mulheres, nos vestimos conforme nosso estado de espírito. Tem dias que a gente quer sair de casa deslumbrante, e outros que a gente quer sair de pijama, se pudesse. Isso tem a ver com o resultado do meu trabalho, porque, quando a gente está com nossa autoestima bem-resolvida, feliz, quando a gente se reconhece nos nossos desejos, a gente oferece mais alegria, faz um trabalho mais consistente. Esse processo [das agressões virtuais] me trouxe algumas tristezas, mas também me deu muitas alegrias. Mulheres empoderadas, como juízas, desembargadoras, que viveram um processo muito semelhante, escreveram para mim.

Muita gente te procurou, então? Muitas, muitas. Me mandaram mensagem no privado, textos inacreditáveis, sobre o quanto essa realidade é comum a tantas mulheres. De a mulher se autorreprimir, pela necessidade de se sentir aceita, por causa do julgamento da sociedade. Quantas amigas eu tenho que o namorado ou marido chega e diz: “Ah, não, amor, tu não vai com essa roupa hoje, né? Essa blusa está muito transparente”. Muitas e muitas de nós passamos por isso. Você pode ter se achado linda, mas acaba trocando para evitar uma briga. 

Algumas pessoas disseram que a Assembleia não era o lugar para usar esse tipo de roupa. Concorda? Eu não concordo. Mas respeito e aceito com muita humildade. As pessoas não precisam pensar igual. Uma crítica respeitosa é bem-vinda. As pessoas podem achar que minha roupa estava imprópria, tudo bem. O que é intolerável são as agressões, a violência, o julgamento. Isso é que não dá.

Eu não achei inapropriado, porque a roupa estava dentro do protocolo. Ela não é costumeiramente usada nessas ocasiões, mas estava absolutamente dentro do ‘dress code’ da Casa. Não houve nenhuma quebra de decoro. Mas as pessoas podem achar impróprio porque a nossa participação na política é tão minúscula, são tão poucas mulheres, que a gente vai se adaptando a uma série de regras que, se você for pensar, não são do mundo das mulheres. São do mundo dos homens.

É um padrão imposto? Sem dúvida nenhuma. Se você percorrer seus sentimentos, talvez não sejam esses os seus desejos. É uma convenção que está posta. Mas não precisa se sujeitar a ela, se não é da nossa vontade. Desde que a gente não exceda, naturalmente, o limite do respeito. Essa questão do que é adequado ou não é algo muito subjetivo. À luz da razão, [a roupa] estava dentro do protocolo da casa. Então, é uma questão de gosto.

De novo: a participação das mulheres é tão minúscula na política que, quando a gente se coloca de uma forma mais feminina, no nosso estilo, isso destoa do ambiente. Se a gente tivesse 15 mulheres e 25 homens [como deputados], ou 20 a 20, com certeza absoluta haveria outros decotes naquela Assembleia. Porque eu não sou a única mulher que gosta de decote.

A que atribui toda a reação ao seu decote? Eu acho que isso é um extrato desse machismo secreto, subterrâneo, que ainda está posto na nossa sociedade e que a gente, inconscientemente, se permite alimentar. E também porque as mulheres têm uma participação muito reduzida na política, além desse momento de conservadorismo no nosso país. São vários fatores combinados. As redes sociais também têm um poder incontrolável. Ali, todo mundo fica corajoso. É uma onda perigosa. E precisa ter limite. Quando algumas pessoas forem processadas e condenadas a pagar indenizações, a reparar danos por ofensas morais, aí a gente reduz a temperatura.

A sra. se arrependeu de ter usado o macacão? De todas as perguntas que me fizeram até agora, essa é a mais difícil de responder. Porque tem uma metade de mim, a Paulinha como ser humano... Essa Paulinha, nossa senhora. No sábado [dia 3], eram 4h da manhã e eu não tinha nenhum músculo, nenhum osso, que não tivesse doendo em mim. Tu começa a ler e não consegue entender o que está acontecendo, por que as pessoas estão fazendo aquilo. E eu queria responder um comentário, apagar outro... Aquilo foi crescendo de um jeito que, quando eu vi, era de madrugada. 

As pessoas falavam que eu era uma prostituta, representante das putas; me chamavam de dona de cabaré, de vadia, vaca. “Se for estuprada, depois não abre a boca para reclamar.” Eu sou uma pessoa de fé, e uma mulher escreveu que eu deveria ser proibida de tocar no nome de Deus, porque Deus não abençoa gente como eu. São coisas cruéis, que não se dizem a ninguém. Claro, essa primeira Paulinha ficou arrependida.

Mas tem uma outra Paulinha, que descobriu uma rede esplêndida de apoio. Que não poderia retroagir, depois de uma conquista que demorou anos para obter. Eu não queria provocar tudo isso. Mas eu não posso dizer que não faria isso. Porque não é justo comigo, nem com nenhuma outra mulher. A gente não tem que recuar diante dos nossos desejos. Não temos que nos subjugar.

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