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Cadete narra rotina do trabalho de buscas por vítimas em Brumadinho

Formado em engenharia elétrica pela USP, rapaz largou emprego em banco para virar bombeiro

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São Paulo

Natural de Avaré (SP), o cadete Leandro Nogueira, 29, formou-se em engenharia elétrica pela USP de São Carlos em 2013 e, no ano seguinte, foi aprovado em um processo seletivo no banco Itaú. Desmotivado, deixou o emprego após nove meses e, agora, cinco anos depois, faz parte da tropa acadêmica do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais e ajuda no resgate das vítimas em Brumadinho.

O cadete, sentado em meio à lama, vestindo uniforme de bombeiro e de capacete, todo sujo do barro que vazou da barragem de Brumadinho
O cadete Leandro Nogueira, 29, que participa de buscas por vítimas do rompimento da barragem em Brumadinho (MG) - Arquivo pessoal

Leia o depoimento de Leandro à Folha.

 

Em 2014, depois que terminei a faculdade de engenharia elétrica na USP de São Carlos, no interior paulista, passei no processo seletivo do Itaú, em São Paulo. Estagiei lá por nove meses, quando resolvi sair e iniciar meus estudos para passar em algum concurso. 

Eu percebi que o meu trabalho no banco não me motivava, e queria trabalhar com algo que realmente pudesse fazer a diferença na vida das pessoas. Nunca gostei de ficar atrás de uma mesa de escritório, no ar-condicionado. A profissão como bombeiro é mais ativa, menos rotineira, isso me motiva bastante. 

Como a matéria do concurso para o Curso de Formação de Oficiais do Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais é bem parecida com a do vestibular, não tive muita dificuldade para passar. Estudei cerca de oito horas por dia durante três meses, em casa, além de fazer um preparo físico com um personal trainer. Comecei o curso de formação de oficiais em março de 2017 e termino no final deste ano. 

Vim para Minas sem conhecer ninguém, para construir uma vida nova, porém nós, cadetes, formamos uma família de amigos e sempre podemos contar uns com os outros. A parte mais difícil é ficar longe da família. Sou de Avaré (SP), distante 800 km de Belo Horizonte, e geralmente nos feriados em que não estou escalado vou visitar meus parentes.

Bombeiros buscam corpos na lama em Brumadinho - Eduardo Anizelli - 2.fev.19/ Folhapress

Sou o único paulista entre os 56 cadetes da minha turma, o que me dá bastante orgulho de representar meu estado.

Temos aulas de segunda a sexta, das 8h às 18h e somos escalados para estágios nos batalhões da Grande BH nos finais de semana. Minha rotina é muito puxada, desgastante, porém nunca passou pela minha cabeça desistir. 

Em Brumadinho faço parte da tropa acadêmica, com uma rotina diferente das outras tropas no Corpo de Bombeiros. É importante a participação dos cadetes no desastre, pois podemos colocar em prática o conteúdo aprendido e observar a dinâmica de uma ocorrência desta magnitude.

Os cadetes estão divididos em três grupos que se revezam a cada 2 ou 3 dias de trabalho, de modo que sempre há uma equipe em Brumadinho. 

O trabalho vai das 6h até pouco antes de o sol se pôr, pois com a ausência de luz os riscos aumentam e as buscas são ineficientes. À noite, retornamos ao posto de comando e depois para o hotel onde estamos hospedados, a cerca de 40 minutos, jantamos e vamos dormir por volta das 23h.

Na noite anterior ao embarque para Brumadinho fiquei bem ansioso e não dormi quase nada. Lá, no entanto, após um dia inteiro de buscas, a gente chega no hotel e apaga. O cansaço é muito grande.

É muito motivador quando podemos colocar em prática o que aprendemos, como em Brumadinho. É nessas situações que percebemos por que é importante rastejar na lama nos treinamentos e manter o preparo físico sempre em dia.

Sem dúvida, rastejar é a parte mais desgastante. Parece que a gente não sai do lugar. A lama gruda no fardamento e pesa bastante. A gente tem que fazer muita força nos braços para puxar o corpo com o auxílio do cajado, por que as pernas começam a afundar. 

Além da lama em si, ainda temos que transpor muros altos e cercas e enfrentar a desidratação. Quando estou rastejando penso que tenho que cumprir a missão. Penso nas pessoas que posso ajudar e que estou lá para isso

Ainda não encontrei nenhuma vítima. Eu já estive em um local mais distante de onde a barragem se rompeu, com menos probabilidade de encontrar algum corpo, e também já fiz uma segunda varredura em uma área na qual já tinham passado militares. 

No primeiro dia notei um indício a cerca de 50 metros da margem. Tentei ir engatinhando, mas logo no início senti que não seria possível, comecei a afundar e tive que deitar na lama para parar de descer. Fui e voltei rastejando. Era só um tronco de árvore.

Não tenho medo de contaminação com a lama, pois nós estamos tomando todos os cuidados possíveis. Evito o contato da lama com o rosto. Todos estão tomando medicação preventiva e serão submetidos a exames de sangue. Também fomos dispensados de fazer a barba todo dia para evitar contaminação.

Em dois anos de corporação, é a primeira vez que participo de uma ocorrência desta magnitude. Em meio à lama é difícil imaginar que chegue a mais de 10 metros de profundidade em alguns lugares e que tenha edificações inteiras soterradas.

Antes de sair para a zona quente, são fornecidos para cada militar dois kits com água, isotônico, suco, sanduíche e fruta. É importante não levar muita coisa para que as mochilas não fiquem pesadas.

Nos pontos em que há estradas perto da lama, sempre há voluntários com comida e água. O alimento no kit geralmente é suficiente para mim, porém a água fornecida pelos voluntários, sempre gelada, me ajudou bastante.

Outro apoio fundamental deles foi o serviço de lavagem das fardas. Nós entregamos a farda suja no final do dia e eles devolvem elas lavadas no dia seguinte, isso ajuda bastante.

Certamente dá para aprender muito com uma experiência dessa. Brumadinho me ensinou, principalmente, que para prestar o melhor serviço devemos estar preparados para quaisquer desastres. Eles ocorrem sem avisar.

Talvez nossa profissão seja a que mais se aproxima dos heróis, porém eu não gosto muito dessa analogia.

Nós treinamos diariamente e desenvolvemos técnicas para salvar as pessoas que estão em risco de vida. Então o nosso trabalho é fruto de muito treino.

São muitos os desafios, mas gosto disso. Sinto que encontrei a profissão certa.

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