Sem corda e cercado, relógio centenário da Praça da Sé congelou às 7h10

Peça de 1910 não recebe manutenção há meses porque tapume que a protege impede relojoeiro de entrar

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Nelson Antoine Thiago Amâncio
São Paulo

O tempo parou na praça da Sé. Passe o leitor ali às 6h, com centenas de pessoas saindo da estação de metrô, passe às 20h, com centenas de pessoas entrando na estação de metrô, os ponteiros do relógio da praça que marca o ponto zero da cidade de São Paulo vão continuar registrando 7h10.

Um relógio fabricado em 1910 e instalado em 1978 na praça da Sé, centro da capital paulista, está parado desde outubro porque o relojoeiro responsável não consegue mais dar corda nele. 

A torre do relógio, de vidro, foi invadida por moradores de rua. Um tapume foi colocado para evitar sua depredação e, agora, ninguém mais entra —seja para dormir, seja para acertar as horas.

Por 40 anos, a cada cinco ou seis dias, Augusto Fiorelli, 59, subiu as escadas da torre, abriu um alçapão, deu corda em uma manivela que eleva pesos de 80 kg e 120 kg, lubrificou engrenagens, acertou as horas e lustrou o sino que tocava a cada meia hora, num trabalho que lhe tomava cerca de 15 minutos por visita.

“Quando saio do metrô, me dá até uma tristeza em ver esse relógio parado assim”, diz ele à reportagem, por volta das 9h20 de terça-feira (19).

Dezenas de pessoas sem casa escolhem a praça da Sé para dormir ou para passar o dia. No fim do ano passado, os sem-teto quebraram a porta de vidro da torre do relógio e se abrigaram lá do sol e da chuva. Para evitar mais depredações, a prefeitura fechou o local com um tapume, mas ainda é possível ver vestígios de ocupação, como garrafas e cacos de vidro.

Com as constantes depredações, a Potenza Engenharia, que faz a manutenção da praça para a Prefeitura de São Paulo e que paga o salário de Fiorelli, anunciou à administração municipal que não havia mais segurança para fazer o trabalho.

A gestão Bruno Covas (PSDB) disse à Folha que busca parceria para colocá-lo novamente em funcionamento. E ainda que “equipes realizam diariamente busca ativa em toda a cidade, mas não podem obrigar as pessoas a aceitarem os serviços ofertados pela rede socioassistencial”.

A sorte, afirma Fiorelli, é que para acessar o maquinário do relógio, que está no alto da torre, é necessário abrir um alçapão que fica trancado. “Se não, já teriam vendido um relógio de 1910 em um ferro velho”, conta.

Ageniro Passos, 40, desde os 29 na rua, prefere dormir embaixo de um viaduto próximo dali enquanto não consegue juntar dinheiro para voltar à Bahia, mas entende por que alguns escolhem a torre do relógio como casa. “O pessoal dorme aqui mesmo, tem que se esconder da chuva de algum jeito”, diz.

Com um colete amarelo “compro e vendo ouro”, Josué Marques da Silva, 63, que trabalha na praça há 30 anos, diz que viu invadirem “umas cinco vezes. Quebra, arruma, quebra, arruma”, diz, e destaca que a poucos metros do relógio há uma base da Guarda Civil Metropolitana, responsável pela segurança do patrimônio público, e outra da Polícia Militar.

Fiorelli conta que as invasões sempre foram comuns, mas que o relógio nunca ficou parado por tanto tempo. “Às vezes tinha fuga na Febem [atual Fundação Casa] no Tatuapé, a molecada fugia aqui para a praça e ficava cheirando cola. Quando eu abria a porta para dar corda no relógio, eles subiam e se sentavam nas escadas. Tinha que ficar insistindo para saírem e, às vezes, precisava até da polícia.”

Fiorelli chegou cinco minutos antes da hora marcada para conversar com a reportagem. Ele é um homem baixo, magro e de fala calma, que usa um relógio no pulso e conserta outros em sua relojoaria a um quarteirão da praça, na rua Venceslau Brás.

O ofício aprendeu com o avô, também Augusto Fiorelli, que tinha uma relojoaria na praça da Sé desde os anos 1940. Em 1976, o relógio parado, fabricado em Londres há 109 anos, foi encontrado em uma caixa em um prédio no Brás desapropriado pela extinta Empresa Municipal de Urbanização. 

Com a inauguração da estação de metrô da praça da Sé, em 1978, e a revitalização do local, a família Fiorelli foi convidada para fazer a manutenção do relógio instalado ali. Hoje, o relojoeiro neto cuida ainda de outros 11 relógios vistosos da cidade, como o da Estação da Luz e o da Faculdade de Direito da USP, além de restaurar outros pelo interior de São Paulo e de Minas Gerais.

Se Fiorelli não for a cada cinco dias elevar o cabo de aço do relógio mecânico, o sino para de tocar. Se passar do sexto dia, o ponteiro também não se move mais. “Agora está assim. Desde outubro são 7h10.”

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