Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Dessalinização no semiárido empaca no custo para ter uso em larga escala

Gasto para tornar água do mar potável pode chegar a US$ 1,50 (cerca de R$ 5,70) o metro cúbico

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Alice de Matos carrega galões próximo à máquina que trata a água salgada no povoado de Poções (BA) - Raul Spinassé/Folhapress
Riachão do Jacuípe (BA) e Recife

Por trás de uma porta de vidro escuro, um fogão industrial de quatro bocas é o protagonista da cozinha da casa de Cristiane de Matos, 46. Com uma colher de pau nas mãos e touca cirúrgica na cabeça, a dona da casa mexe quatro panelas onde leite, ovos e açúcar aos poucos transformam-se numa suculenta ambrosia.

Cristiane não tem água encanada em casa. Mas tem a poucos quilômetros de seu sítio um sistema de dessalinização que fica no povoado Poções, zona rural de Riachão do Jacuípe (a 192 km de Salvador). Três vezes por semana, ela volta para casa com um garrafão de 20 litros de água potável, pelo qual paga R$ 1.

O início da operação do sistema, em 2016, representou uma virada na sua vida: de agricultora passou a microempresária com uma produção artesanal de doces e queijos.

Apontada pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) como solução para o enfrentamento da seca no semiárido, a tecnologia da dessalinização adotada em Israel vem sendo usada há pelo menos 30 anos no sertão nordestino e ganhou ainda mais impulso na última década, com o programa Água Doce. Já são cerca de 250 sistemas em operação.

 

Com custo unitário de cerca de R$ 150 mil, os sistemas tratam a água salobra retirada de poços separando a água potável da água salgada. Em Riachão do Jacuípe, são oito sistemas que atendem a pelo menos 300 famílias.

Cada equipamento produz cerca de 400 litros de água potável por hora. O volume é equivalente a 30% da água bruta retirada do poço. Os outros 70% formarão o rejeito, que são bombeados para tanques onde vão evaporar.

Em algumas comunidades, os rejeitos já são aproveitados para a criação de peixes em tanques de piscicultura ou para a produção de erva-sal, planta resistente à salinidade usada na alimentação de caprinos —a tecnologia foi desenvolvida pela Embrapa.

Em Riacho das Almas (PE), por exemplo, serão produzidas tilápias para a merenda escolar da rede pública de ensino do município.

Apesar de bem-sucedida em comunidades isoladas, o uso da dessalinização em larga escala, com o tratamento de água do mar, é apontado por especialistas como mais caro e logisticamente difícil para ser adotado no semiárido.

Enquanto nos sistemas em poços no sertão nordestino o custo do metro cúbico da água fica em torno de R$ 1,50, para dessalinizar água do mar pode chegar a US$ 1,50 (cerca de R$ 5,70) o metro cúbico.

O engenheiro químico e coordenador do laboratório de referência nacional em dessalinização da Universidade Federal de Campina Grande, Kepler Borges França, afirma que a tecnologia pode ser usada em capitais litorâneas do Nordeste, onde há uma concentração populacional que pode justificar o investimento.

Para o sertão do Nordeste, contudo, a adoção da tecnologia em larga escala demandaria gastos com energia para bombear a água desde o litoral até as cidades do semiárido.

"Há uma questão geográfica. Como levar água em grande escala para o sertão? Fica muito caro", diz o pesquisador.

Ao contrário de Israel, cuja extensão territorial é menor do que Sergipe, o sertão nordestino tem cidades que ficam a até 800 km da costa. Por outro lado, há rios perenes a distâncias menores que podem servir para a construção de açudes, barragens e adutoras, que são consideradas alternativas mais baratas.

A conclusão é reiterada por governadores da região, que assim como pretende fazer o ministro da Ciência e Tecnologia Marcos Pontes, já visitaram Israel e conheceram os sistemas de dessalinização adotado pelo país.

"Eu até brinquei com o embaixador e disse que se ele conseguisse a água da dessalinização a um preço competitivo, eu desistia de construir uma nova barragem para abastecer Salvador e fechava negócio na hora", disse o governador da Bahia Rui Costa (PT), que esteve em Israel.

O governador da Paraíba, João Azevêdo (PSB), que é engenheiro, afirma não há como comparar o sistema de Israel com o do Brasil. "Para as cidades que estão próximas do mar, o custo é bem mais baixo", diz.

Outro entrave é o custo com a manutenção dos equipamentos. O pesquisador João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, explica que boa parte dos sistemas de dessalinização no Brasil está parado por falta de manutenção.

Ele defende o incentivo a trabalhos paralelos de desenvolvimento de pesquisa para implementação de membranas filtrantes produzidas no Brasil. "É possível utilizar membranas desenvolvidas aqui no país. O custo seria barateado. Já temos tecnologia para isso", diz.

Para conseguir manter os equipamentos, o programa Água Doce desenvolveu um modelo de gestão no qual os sistemas são mantidos pelas próprias comunidades, com apoio dos governos estaduais.

As famílias pagam R$ 1 por um garrafão de 20 litros, dinheiro que vai para uma reserva para consertar ou comprar novas peças.

Para evitar que o sistema se desgaste com rapidez, as famílias são orientadas a usar a água dessalinizada em apenas quatro atividades: beber, cozinhar, escovar os dentes e dar banho em recém-nascidos.

Mesmo restrita, a troca da água salobra pela dessalinizada tem impacto na saúde, com a redução de doenças relacionadas à água contaminada, e também no sustento das famílias, que já usam a água limpa para iniciar seus próprios negócios e fazer planos.

Entre seus queijos e ambrosias, Cristiane de Matos revela o seu: "Não demora e estou no programa da Ana Maria Braga".

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