Pode até não ter sido ele o autor da frase, mas João Clemente Jorge Trinta a assumiu com prazer: “Povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”.
Este agrupamento de dez palavras, produzido nos anos 1970, abriga ideias e contradições do tamanho do Brasil. No amanhecer de 7 de fevereiro de 1989, Joãosinho Trinta as expôs com força poucas vezes vista no Carnaval.
O desfile da Beija-Flor de Nilópolis era muito aguardado. Ao título incomum, “Ratos e urubus... larguem minha fantasia”, Joãosinho acrescentara (mais) uma frase poderosa, dita ao jornal “O Globo”: “Vamos surpreender pela opulência dos restos”.
Ainda havia a dúvida sobre como ele apresentaria o Cristo Redentor. Acolhendo ação do arcebispo do Rio, d. Eugenio Sales, a Justiça proibira a escola de exibir a imagem.
O impacto do início do desfile está entre os acontecimentos mais marcantes dos 35 anos do Sambódromo carioca. As formas da estátua do Cristo eram reconhecíveis sob o grande saco de lixo preto que a cobria. E suas mãos estendiam uma faixa com nova sentença lancinante: “Mesmo proibido, olhai por nós!”.
Em torno da alegoria, centenas de pessoas —atores famosos entre elas— evoluíam envoltas em farrapos. Representavam mendigos, o avesso do que se dizia ser o traço principal do trabalho de Joãosinho: o luxo.
O acerto de contas do carnavalesco com seus críticos é um dos ingredientes do caráter histórico de “Ratos e urubus...”. Há outro que também fica dentro das fronteiras do mundo das escolas de samba: como um desfile tão forte pôde não ser o vencedor?
A Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba) orienta o julgador a avaliar o seu quesito e não se preocupar com a apresentação como um todo. Os três jurados que tiraram pontos da Beija-Flor lamentaram depois o resultado, mas explicaram ter seguido o regulamento. No caso de samba-enredo, quesito que foi o decisivo, deu-se que o samba da Imperatriz Leopoldinense era bastante superior.
O curioso (ou irônico ou cruel) é que o desfile da Imperatriz se mostrou o alvo em que, ao menos naquele ano, Joãosinho estava mirando: luxo visual e miséria intelectual. O enredo “Liberdade! Liberdade! Abra as asas sobre nós”, brilhante à sua maneira, exaltava a centenária Proclamação da República seguindo a cartilha oficial. E enxergava o fim da escravidão como tendo sido um presente de “Isabel, a heroína/ Que assinou a lei divina”.
Em 21 páginas do livro “Por que Perdeu? – Dez Desfiles Derrotados que Fizeram História”, o jornalista Marcelo de Mello destrincha vários aspectos que giram em torno daquele Carnaval de 1989, inclusive os já citados.
Na política, o governo de José Sarney era impopular, e sua taxa de rejeição bateria 64% em julho. Ansiava-se pela primeira eleição direta para presidente em 29 anos, marcada para novembro —e que daria em Fernando Collor, mas aí é outra história.
Na economia, a inflação de janeiro tinha sido de 70,28%, e a do ano fecharia em 1.782,90%. A má distribuição de renda e o arrocho da classe média criavam um enorme fosso entre ricos e o resto da população.
Tudo era fermento para um espetáculo que catalisasse insatisfações e produzisse catarse. “Ratos e urubus...” conseguiu, apelando até para soluções fáceis, como dar à alegoria “O lixo da política” o formato do Congresso Nacional.
Joãosinho Trinta realizou como nunca antes —e jamais depois— o que afirmava dever ser um desfile de escola de samba: uma ópera popular. Deu a ela tons dantescos, fellinianos, como à época apontaram comentaristas, em boa recordação de Mello em seu livro.
O autor também destaca que Joãosinho fez isso mostrando que, historicamente, o Carnaval é algo sujo: os entrudos, os bate-bolas, o desregramento. Como retratar o Brasil e o Rio de Janeiro de então com feições limpinhas?
Reforçando a inversão de valores característica do reinado de Momo, a ópera dos mendigos foi testemunhada por pessoas com algum dinheiro e turistas, pois o Sambódromo já tinha ingressos elitistas, distorção que só pioraria com o tempo.
O lixo superou o luxo como fato histórico em 1989 e painel perene do país. Mas o luxo superou o lixo na realidade bruta dos números. Não deixou de ser desfecho adequado para um espetáculo sobre o Brasil.
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