Descrição de chapéu Alalaô

Blocosfera: Carnaval é a arte de fingir que está tudo bem

Todos parecem alegres, mas o país está rachado ao meio

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Fui pego de surpresa, num Uber para Cumbica, com o convite para escrever no caderno “Alalaô” —não é um mau nome, mas eu prefiro “Folia de S.Paulo”.

Logo eu? A pessoa menos carnavalesca do Brasil?

Beleza. Vesti o personagem e aproveitei as seis horas de voo que tinha adiante. Castiguei as teclas do notebook com uma crônica ranzinza sobre minhas artimanhas para escapar do Carnaval. Você pode ler esse texto no meu blog.

Fui atropelado pelos fatos. No domingo de Carnaval, saí voluntariamente para levar meu filho a um bloco. E não desgostei totalmente da experiência, contradizendo o que eu havia escrito antes. Saco. Jornalistas não podem simplesmente ignorar as contradições.

Dizer que não gosto de Carnaval é uma mentira que eu conto para mim mesmo desde o desfralde. A verdade é que eu não consigo entender o que move todas aquelas pessoas. Paixões coletivas como futebol e Carnaval não me falam à alma —não é fácil ser assim no Brasil.

Afinal, para que serve o Carnaval?

Criança, eu era levado às matinês para jogar confete e serpentina em outros meninos e meninas. Legal, mas brincar com papel picado cansa cedo até um pivete de cinco anos. Não creio que esse seja o espírito da folia.

Quando fui conhecer o Carnaval dos adultos, vi que muitos encaravam a festa como um facilitador de encontros sexuais. Interessante. Mas há tantos outros jeitos de se virar!

É possível obter sexo de qualidade muito superior sem enfrentar multidões, banheiros inundados de urina, chuva, rala-rala com estranhos suados, congestionamentos e aeroportos lotados, acomodação precária, falta de água, bebida ruim, música qualquer nota e a odisseia da volta para casa. 

Não deve ser esse o ponto.

O Carnaval tem uma alegria que não me contagia. No domingo, observei a gorducha de Mulher-Maravilha torrando ao sol. O casal purpurinado empurrando ladeira acima um carrinho com gêmeos. Um neopierrô que cozinhava dentro de um macacão feito de toalha de mesa. A garotada seminua bebendo catuaba no bico.

Todos pareciam alegres. Estavam alegres, devo presumir.

Alegres com o quê? O país está rachado ao meio. A pior crise econômica da história. A perspectiva de envelhecer na miséria. Uma pauta de costumes que aponta para a Idade Média. Civilidade, empatia, compreensão, compaixão —todas mortas.

E as pessoas pulando Carnaval. Gritando a plenos pulmões: “Doutor, eu não me engano, o Bolsonaro é miliciano.” Não deveriam estar furibundas? Segue o hino antifa “Bella Ciao”, que só é conhecido porque passou na Netflix. Confete, serpentina e Corote acompanham o protesto.

Percebi que o Carnaval é a arte de fingir que está tudo bem. Lamento dizer isso hoje, mas não está.

Eu não consigo fingir. Bom Carnaval para quem consegue.

Marcos Nogueira escreve a coluna Cozinha Bruta e pensa que é imune ao Carnaval

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