Descrição de chapéu Alalaô

Blocosfera: Fantasiando a dor dos outros

Falta criatividade em vez de lutar pelo direito de ofender

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Quem quer comprar uma fantasia de Jesus Cristo nunca usada, com peruca e barba postiça? O preço é o mesmo da 25 de Março, R$ 60. Eu não vou usar por motivo de: quase saí com uma fantasia ofensiva no Carnaval

A ideia era ir de ministra Damares e o Paulo, meu par para fantasias há três Carnavais, ia de Jesus. Íamos subir numas goiabeiras ou outras árvores frutíferas que encontrássemos no caminho do bloco Ritaleena, em Pinheiros. Ia ser ótimo. Chuva de likes no Instagram. A bolha ia estourar de rir.

 

Mas uma luz amarela acendeu no momento em que o Paulo estava transformando um lençol branco num santo sudário. Será que as pessoas que acreditam em Jesus, e que Jesus pode descer à terra ou à copa da goiabeira, iam sentir que eu estava rindo da fé delas? 

Eu já sabia a resposta, mas bastou uma mensagem para a Anna Virginia Balloussier, repórter que cobre política, religião e navios nudistas tão bem nesta Folha. “Ia parecer perseguição religiosa se eu fosse fantasiado de Damares e Jesus?”. Ela respondeu: “Muito”. E passou um textão. Eu gostaria que fosse piada com uma experiência sublime com o espiritismo, a única religião que entrou, de leve, na minha família? Não. Ou riria de uma piada tosca envolvendo uma entidade do Candomblé ou outras religiões de matriz africana, perseguidas até pelo Estado? Nem um mísero k, muito menos um kkk.

Há evangélicos que perseguem LGBTs como eu? Milhares. Mas há um outro tanto deles que são perseguidos por causa da sua fé, e é por causa deles que a piada perde a graça.

Foi assim que nasceu minha regra de Carnaval: a dor dos outros não é fantasia. Exemplo prático. Seus bisavós eram escravizados. É aceitável que o bisneto dos escravizadores se pinte de preto para brincar na rua? Se você respondeu sim, não está convidado para o meu cordão.

É nessa mesma zona cinza que mora a máscara de papel com o rosto de Fábio Assunção, que promete ser o hit da folia. Vício é doença. Não importa se a pessoa que luta com ele é famosa, anônima, alta, baixa, rica ou pobre. Não se faz piada com doença. É rir da dor do outro. É dançar e cantar quando um homem acusado de roubo é morto, que nem fez um apresentador de TV na semana passada. É a civilidade que nem no Carnaval a gente pode perder. 

E a regra foi posta a teste já no seu segundo dia. Um outro amigo propôs ir de Jair Bolsonaro, e eu iria de bolsa de cocô. Seria engraçado? Tá. E se fosse meu pai doente, seria engraçado? Se fosse o Justin Trudeau? E a regra vale para todas as siglas e partidos. Lula tratando câncer na laringe ou o linfoma de Dilma também não pode.

 

Mas nem tudo está perdido. Há ainda memes, atores atuando com a expressividade de bichos de pelúcia na novela, David Brazil fazendo selfie na privada, Ana Furtado abismada que uma carteirinha de tecido custa “treix reaix”, João Doria dançando numa festa (não aquela outra festa do vídeo com várias mulheres e um homem que parecia ser João Doria, mas ele negou). 

Fantasia é o que não falta. O que falta é esquentar a cachola em vez de lutar pelo direito de ofender os outros, e ainda chamar isso de liberdade de expressão.

Vai a fantasia de Jesus, ficam os dedos, recortando cartolina para fazer uma nova. Vou de Flávio Bolsonaro chorando e limpando muco na bandeira do Brasil. Essa pode, porque não vai ferir os sentimentos de ninguém, a não ser de Flávio Bolsonaro. É capaz que ele volte a chorar e expelir ranho a qualquer momento diante de uma câmera de iPhone —mas pelo menos ele tem a bandeira para se limpar, um salário bruto de R$ 33 mil, mais um monte de auxílio-moradia, auxílio-terno e outros tantos auxílios mais que desconheço. Ele aguenta uma piada.

Chico Felitti é repórter. Trabalha 359 dias do ano para poder folgar no Carnaval. Seu maior orgulho é nunca ter tido um cartão de débito clonado na folia

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