Com R$ 1.500 e dois laudos, é possível ter arma em casa

Repórter da Folha conseguiu em dois meses permissão para posse de armamento com ajuda de clube de tiro

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São Paulo

“Egocentrismo?”, me perguntou, um tanto surpresa, a psicóloga. “É esse defeito que você escreveu aqui?”. “É...”, balbuciei, meio envergonhado. “A maioria deixa essa parte em branco”, ela disse. “Mas eu tenho uma estratégia: pergunto se a pessoa é casada ou se tem namorada. E do que a companheira vive reclamando de você? Pronto. Assim, todo mundo descobre um defeito.”

Em dezembro de 2018, eu estava tendo essa conversa com uma psicóloga credenciada pela Polícia Federal para tirar o documento de posse de arma. Jair Bolsonaro havia sido eleito com a promessa de facilitar a posse, o que ele efetivamente fez em janeiro. 

Descobri que a intervenção do presidente não era necessária: já era fácil.

Basicamente, você apresenta uma série de documentos e realiza dois laudos: o psicológico e o de tiro. É possível fazer todo o périplo sozinho, mas é muito mais fácil usar um clube de tiro, que vai acertar os encontros e providenciar a documentação necessária. O processo custa cerca de R$ 1.500 em São Paulo.

Alvo usado pelo repórter Ivan Finotti, que simula silhueta para aulas de tiro  - Adriano Vizoni/Folhapress

O laudo psicológico é dividido em duas partes. Na primeira parte, tive que fazer uma série de exercícios no papel, como desenhar várias linhas de tracinhos verticais (“você é organizado”, decretou a doutora ao ver os traços pendendo para a direita). Outro teste simples é riscar em ordem quadradinhos numerados de 1 a 50 em menos de quatro minutos (só cheguei até o 43).

Em seguida, respondi um questionário, em parte sozinho e em parte com a psicóloga. Algumas perguntas eram sobre armas (“porta arma em seu trabalho?” ou “já se envolveu em alguma ocorrência portando arma?”), mas a maioria eram obviedades como “com quem você mora?” ou “bebe? Quanto por semana?”.

Mas havia uma parte mais encasquetada, sobre nossos demônios internos: “Quando você pensa em sua infância, do que se lembra?”. “Como eram as punições na sua casa?”. “Tem crises de choro?”. “Medo de altura?”. “O que precisava de meus pais e não tive foi...”. “Costuma ouvir vozes de pessoas que não estão ali?”. Deus me livre!

O repórter da Folha de S.Paulo Ivan Finotti dispara arma de fogo em clube de tiro localizado na Lapa, região oeste de SP - Jardiel Carvalho/Folhapress

O laudo psicológico termina com um exercício lúdico. Você escolhe entre dezenas de quadradinhos coloridos na mesa e monta pequenas pirâmides. Fiz uma imitando uma fogueira (vermelho, laranja e amarelo), outra verde e branca (Palmeiras!) e a última megacolorida, sem ordem nenhuma (em homenagem ao mestre do caos).

Não entendi para que serviam, e a psicóloga não deu dicas. Uma busca no Google, entretanto, me levou a um trabalho acadêmico chamado “O Teste das Pirâmides Coloridas de Pfister e o transtorno obsessivo compulsivo”. Não precisa dizer mais nada, né?

Parece que eu não sofro de tal transtorno, pois quatro ou cinco dias depois recebi uma ligação do clube de tiro dizendo que eu havia passado na avaliação psicológica e estava pronto para fazer o laudo de tiro.

Esse laudo também tem duas partes, e a primeira é responder à “Prova Teórica de Armamento e Tiro” (lei federal 10.826/03), com dez questões que leigos não vão saber. Por exemplo: “A munição é composta por: a) espoleta, estojo, pólvora e projetil; b) espoleta, alça mira, chumbo e pólvora; c) cápsula, estojo, pólvora, propelente e iniciador.”

Eu nunca havia tocado em uma arma na minha vida e aquilo para mim era grego. Por isso, segui o bom conselho da proprietária do clube e aceitei fazer um curso de quatro horas numa manhã de domingo de janeiro. O curso custaria mais R$ 650, paciência.

O curso básico de tiro ensina regras de segurança (jamais aponte a arma a alguém, mesmo descarregada), definições e objetivos de uma arma de fogo, os fundamentos de tiro (postura, respiração etc.), as diferenças entre revólver (tem um tambor que gira e aparece nos faroestes) e pistola (tem um carregador com balas que encaixa dentro da empunhadura; aparece em filmes de espião), os defeitos que as armas podem apresentar e, finalmente, a legislação brasileira sobre o assunto.

Essa é a parte mais surpreendente. Ali descobri que só pudemos usar até o calibre 38 (munição de 0,38 polegadas, quase 1 centímetro). O 45 é proibido para uso civil. 

Também aprendo que andar armado pelas ruas pode me dar de 2 a 4 anos de cadeia, uma vez que a permissão é para possuir a arma para defesa pessoal em casa, no caso do documento da Polícia Federal —ou indo e voltando de um clube de tiro, no caso do processo de atirador desportivo, controlado pelo Exército.

Mas o que mais me surpreendeu foi a pena de 2 a 4 anos para quem der um tiro a esmo. Seja para cima, para baixo ou numa árvore, tudo isso é proibido. São apenas duas as possibilidades legais de você dar um tiro no Brasil: dentro de um clube especializado ou em alguém. E no caso esse alguém tem que estar ameaçando você ou sua família.

O professor explica que ninguém deve se meter a besta de atirar para o alto para espantar um ladrão: você pode ficar até quatro anos convivendo com o PCC. 

E menos ainda intervir em um roubo em andamento: você só pode atirar quando a sua vida (ou a de sua família) está em risco. Ponto final.

Terminada a aula, descemos para o porão do clube, onde ficam os estandes de tiro. O clube oferece alguns alvos de zumbis, juro, mas o professor escolheu aquelas silhuetas sem alma, com número 5 na região do coração e outros menores em áreas menos letais.

O curso dava direito a 50 tiros, sendo dois de espingarda calibre 12 e o restante dividido entre pistola e revólver. O cheiro de pólvora toma o nariz por ali e você precisa usar protetor de ouvido e óculos. Os alvos ficam a 5 ou a 7 metros do atirador.

Começo com a pistola. A arma é mais pesada do que imaginava e o gatilho é duro de puxar. É preciso segurar com as duas mãos, mas apertar com um dedo só. Vou “esmagando” o gatilho, como os entendidos dizem, e de repente POW. Depois do primeiro, o resto vem fácil. O revólver é mais simples de usar e dá menos problemas de travamento. A espingarda assusta pelo barulho e pelo tranco mais forte.

Não senti nenhuma, absolutamente nenhuma sensação ao atirar. Nem de poder, nem de medo, nem muito menos de alívio de estresse, como muitos afirmam sentir. Em suma, não achei a mínima graça.

Mas após o curso, estou apto a fazer o laudo de tiro, que marcamos para a mesma semana. Dias depois, realizei a prova teórica e acertei 8 de 10 questões. Descemos novamente para o porão, desta vez com 20 balas de pistola. Acertei 17 no alvo e três na região 4: foram 97 pontos em 100 possíveis.

O instrutor credenciado se empolga pelo fato de eu ser novato. “Nasceu pra isso”, garante. Aquiesço, mas não revelo porque sou tão bom: anos de videogame matando alienígenas e nazistas me deram o sangue frio suficiente para tirar a realidade de letra.

Passo a passo para conseguir a posse de armas

Requisitos: ter mais de 25 anos, residência fixa, ocupação lícita, aptidão técnica e psicológica e não ter antecedentes criminais

Pode-se fazer o processo por conta própria ou procurar um clube de tiro, que funciona como um despachante

Psicólogo credenciado pela Polícia Federal deve atestar aptidão

Candidato deve ser aprovado em teste de capacidade técnica para atirar emitido até um ano após avaliação psicológica (clubes de tiros oferecem cursos prévios para quem não tem experiência)

Após entregar os documentos à Polícia Federal, candidato recebe uma autorização para comprar arma de fogo. A arma deve ser registrada junto à PF ou ao Exército

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