Descrição de chapéu Alalaô

Mangueira volta à Sapucaí ovacionada pela esquerda e criticada pela direita

A campeã do Carnaval carioca exaltou símbolos de minorias brasileiras, de Luísa Mahin a Marielle Franco

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Rio de Janeiro

E aí, gostou da Mangueira? Muitos vão responder "histórica!", outros tantos, que foi "tendenciosa demais" para os seus gostos. Mais incontestável é dizer que, a essa pergunta, quase ninguém se mantém indiferente, ao sabor do Brasil polarizado de 2019.

Ao levar à Marquês de Sapucaí "História pra Ninar Gente Grande", samba-enredo que se dispõe a tirar "a poeira dos porões" e reescrever "versos que o livro apagou" para "contar a história que a história não conta", a campeã do Carnaval carioca deste ano exaltou símbolos de minorias brasileiras.

Lá estava Luísa Mahin, africana por trás de levantes de escravos no Brasil do século 19, como a Revolta dos Malês, e na Sapucaí interpretada pela deputada estadual e ativista Leci Brandão (PCdoB-SP). Estava também Marielle Franco, vereadora do PSOL assassinada há quase um ano no Rio e estampada em bandeiras, numa ala liderada por sua viúva, Monica Benício.

A mesma ala que trouxe uma bandeira do Brasil reinventada em verde e rosa, com os dizeres "índios, negros e pobres" onde, na versão oficial, fica o "ordem e progresso".

A voltagem política da Mangueira na madrugada deste domingo (10), fechando a volta ao sambódromo das seis escolas de samba que melhor pontuaram, ecoou para além de estrofes como a súplica para que o Brasil dê voz às "Marias, Mahins, Marielles, malês".

Perto do fim do desfile, a minutos de amanhecer, parte do público invadiu a pista e se mesclou aos componentes da escola. Dali saiu um breve coro de "ei, Bolsonaro, vai tomar no cu". Na arquibancada, a certa altura, duas faixas bilíngues contra o presidente Jair Bolsonaro (PSL): uma que dizia "orgulho do Carnaval - vergonha do presidente", a outra, "proud of the Carnival - ashamed of the president".

Responsável por elas, o coletivo mineiro Alvorada distribuiu ao longo da noite adesivos onde se lia "me beija que eu não votei no Bozo" (apelido do presidente entre seus detratores) e cartazes, de novo em português e inglês, com "Carnaval contra Bolsonaro" e "Carnival against Bolsonaro". Faixas de "Lula Livre" também foram erguidas.

Onde a esquerda viu beleza, alas mais à direita enxergaram provocação barata. Caso do deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL-RJ), que em 2016 foi vice do hoje senador Flávio Bolsonaro na disputa pela Prefeitura do Rio —dois anos depois, ficaria conhecido como um dos homens que posaram com uma placa de rua quebrada, o nome de Marielle nela.

A placa rasgada ele mantém em seu gabinete, emoldurada, e sua paixão pela Mangueira, disse à Folha na sexta (8), também não foi a lugar algum: continua sendo sua escola do coração. O que não o impediu, contudo, de achar que a agremiação pisou na bola em 2019.

Para Amorim, nome mais votado para esta Assembleia Legislativa fluminense, o tema mangueirense surfou na "doutrinação ideológica que chegou às escolas de samba, com narrativas que são frutos da dominação gramscista na cultura que critico veementemente".  

"Lacrador é o termo que a esquerda usa, né?", continuou o deputado. "Foi um enredo lacrador, não gostei. Considero a Mangueira muito maior do que ele, e maior do que a faixa de 'Lula Livre' que vimos em sua comemoração [do título]."

Mais indireta pode ter sido a reação do Exército à escola, que num de seus carros alegóricos desconstruiu a figura de Duque de Caxias, patrono da instituição militar.

Uma alegoria de Luís Alves de Lima e Silva, o duque, pisoteava corpos de indígenas e escravos. Atrás dele, um livro gigante que o apresentava pelo seu apelido recorrente na história oficial, O Pacificador. Da plateia era possível ler um texto nada lisonjeiro ao militar, assinado pelo vereador e ex-candidato ao governo Tarcísio Motta (PSOL-RJ).

"Para as elites, negociação, para os trabalhadores, bala de canhão", dizia a passagem inscrita na alegoria carnavalesca, que rebatizou O Pacificador para Passa e Fica a Dor.

No mesmo dia em que a Mangueira se consagrou campeã, o perfil do Exército no Twitter publicou o que foi visto como resposta à escola: "Os valores e os feitos de nosso patrono, o Duque de Caxias, ainda reverberam no peito de cada um de nossos soldados".

Outro a criticar a vitória: o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), que na rede social sugeriu que a Mangueira tem envolvimento com traficantes, bicheiros e milícias. "Esse país está de cabeça pra baixo mesmo", disse.

A nadadora Joanna Maranhão foi uma entre vários usuários que reagiram ao tuíte. "Se eu te contar quem tá acusado de mexer com milícia tu vai ficar chocado, carluxo!" Referência: notícias recentes que ligam a família Bolsonaro a milicianos.

Sobre este Carnaval o historiador Luiz Antonio Simas escreveu: "A escola de samba me ensinou mais que colégio, não tenho dúvida". Pois a releitura da história brasileira proposta pela Mangueira colocou de pernas pro ar a historiografia ensinada nas escolas, como ao mostrar, em sua comissão de frente, caricaturas do que chamou de “heróis emoldurados”.

Neste primeiro vislumbre do Carnaval mangueirense, personagens como dom Pedro 1º e marechal Deodoro da Fonsenca foram primeiro retratados como quadros em belas molduras, e em seguida desciam do pedestal (uma estrutura que lembrava um minicarro alegórico). Chegavam à avenida de joelhos, como se anões fossem, apequenados ante negros e indígenas.

Pedro Álvares Cabral, que nas salas de aula ganha o título de descobridor do Brasil, era um dos notáveis desconstruídos. Isso ao som de um samba-enredo que afirmava: "Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento".

Também não pouparam princesa Isabel, que oficializou o fim da escravidão no país ao assinar a Lei Áurea 131 anos atrás. Não passou batido o contraste com alguns componentes da Vila Isabel, escola que desfilou antes, com um enredo sobre a cidade-sede do império brasileiro, Petrópolis (RJ). Na camisa deles: "Viva a princesa, honramos a tua grandeza”.

Ainda na comissão de frente veio a cantora Cacá Nascimento, 11, com roupas da cor da agremiação, o verde e rosa, no que lembrava o uniforme de uma estudante —​representava a necessidade de reaprender a biografia do Brasil, agora com novos heróis. 

Famosa por gravar o samba da escola, ela levantou uma faixa com a palavra "presente", reverberando o mote consagrado após a morte da vereadora: Marielle presente.

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