Mulher agredida na Paulista diz que não portava faca e vive rotina de medo

Artesã Eloisa Araújo e amigo afirmam que foram atacados ao passar por ato e criticar Bolsonaro

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Júlia Zaremba Jardiel Carvalho
São Paulo

No último domingo (7), a artesã Eloisa Araújo e o tarólogo Kim Scher, ambos de 21 anos, saíram da zona leste de São Paulo e foram para a avenida Paulista, na região central da capital.

Os amigos aproveitam que a via fica interditada para veículos no domingo e vendem bijuterias, fazem leitura de mãos por R$ 1 e tiram cartas de tarô por R$ 5. Depois daquele dia, porém, o rosto de Eloisa estamparia capas de jornais e ela seria mencionada por um dos filhos do presidente.

"Imobilizaram uma mulher que queria matar alguém com algo parecido com a faca que o ex-integrante do PSOL tentou assassinar Bolsonaro... é sempre tudo montadinho", escreveu o vereador Carlos Bolsonaro (PSL-RJ) a respeito da foto que mostra um homem, que participava de um ato pró-Lava Jato, dando um mata-leão na jovem.

"Não era uma faca, uma espada, um cabo de bandeira ou uma vareta do capeta. Era um bastão retrátil, que carrego comigo para defesa pessoal", afirma Eloisa.

O item foi presente do dono de uma banca de quadrinhos na República (região central) onde ela faz bicos. Como sai tarde do serviço e mora em região perigosa, prefere se prevenir. "Ser mulher no Brasil é um perigo. Andar sozinha de noite é pior ainda", diz. "O bastão retrai, não é pontiagudo."

Tirou o item da mochila em meio a uma confusão em que ela e Kim acabaram metidos. Assim que saíram da estação Trianon-Masp do metrô, por volta das 15h, deram de cara com um ato em defesa da Lava Jato. Para chegar até o lugar onde trabalham, tiveram que passar no meio da multidão.

Do alto do carro de som, a ativista de direita e ex-candidata a deputada estadual Isabella Trevisani bradava contra o STF (Supremo Tribunal Federal), a favor do ministro da Justiça, Sergio Moro, e questionando a conotação ruim atribuída à ditadura.

"Ela falou um monte de besteiras. E começamos a questionar isso entre a gente", conta Kim. "Meu, o que essa mina está falando?" e "Esse governo é idiota" foram algumas das frases trocadas entre eles. "Tivemos que elevar a voz porque o carro de som estava alto. Nisso, um cara ouviu e me deu uma voadora nas costas", afirma o tarólogo.

 
A artesã Eloisa Araújo, 21, que levou um mata-leão de um homem durante ato pró-Lava Jato na avenida Paulista
A artesã Eloisa Araújo, 21, que levou um mata-leão de um homem durante ato pró-Lava Jato na avenida Paulista - Jardiel Carvalho/Folhapress

O rapaz foi jogado no chão após reagir. Conta que levou socos, chutes e cusparadas. Ficou com arranhões no braço esquerdo e nas costas.

"Saquei o bastão para tentar afastar a galera, já que a Polícia Militar não fez nada", diz Eloisa. Foi quando um homem a segurou e desferiu um golpe mata-leão nela, cena que viralizou. "Você acha que fiquei com medo? A única coisa que pensava era em tirar o Kim do chão", diz ela, que não teve ferimentos graves. "Fui chamada de lixo, vagabunda, fascista e antifascista."

Policiais militares intervieram e forçaram a mulher a soltar o bastão. Eloisa diz que a abordagem dos PMs foi agressiva e que os dois não foram orientados a registrar queixa. Os PMs só os mandaram recolher as coisas e recomendaram que ficassem em uma manifestação a favor de Lula, no fim da avenida Paulista, para evitar novos conflitos.

Os dois, contudo, contam que não se identificam com o PT ou nenhum partido. São anarquistas e não votam. 

Tiveram que pedir dinheiro para voltar para casa e perderam cerca de R$ 300 em pertences. Em um dia bom, faturam R$ 200. Em um mau dia, não mais do que R$ 50.

Os dois engrossam a lista de desempregados no país. Fazem bicos para sobreviver e pagar o aluguel do apartamento de 40 m² onde vivem na zona leste com os respectivos companheiros e com o filho de Kim, de 1 ano.

Eloisa, de Mogi das Cruzes, já fez faculdade de gastronomia, que não concluiu, fala quatro idiomas e toca quatro instrumentos (baixo, bateria, violino e flauta) por influência do pai, que é músico.

Sonhava em ser jornalista, mas não teve nota boa o suficiente no Enem para uma vaga na universidade pública. Mantém uma página intitulada Literaturista, em que publica poesias e textos. Seu maior ídolo é Paulo Coelho.

Ela conta que morou na rua por seis meses após desavença com a irmã e que teve câncer no ovário na adolescência.

Kim também passou por dificuldades. De Santos, só viu o pai uma vez e perdeu a mãe, usuária de crack, em 2010. Quando a companheira engravidou, largou a faculdade e mudou-se para a capital em busca de oportunidades.

O episódio mexeu com os dois. Eloisa pintou o cabelo de preto —antes, estava verde— para não ser reconhecida e não sai mais sozinha. 

Também recebeu manifestações de apoio. "Ao mesmo tempo em que fico orgulhosa por ter me tornado um ícone de força feminina, me sinto triste pelo que aconteceu comigo e com meu amigo", diz.

Os dois têm medo de voltar à Paulista e sofrer represálias. Pretendem estudar a avenida quando forem, para garantir que não vão esbarrar com protestos. Não descartam tomar medidas contra os agressores. "Se as pessoas tivessem mais amor, carinho e capacidade de diálogo, não precisaria ter acontecido", diz
Kim. "Só quero apagar essa história da nossa vida o mais rápido possível."

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