Resíduo de minério de ferro provoca queimaduras no Maranhão

Gusa Nordeste é responsável pelo descarte da chamada munha; empresa não comenta

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Antônio Araújo, morador de Açailândia, caminha ao lado das montanhas de resíduos inflamáveis
Antônio Araújo, morador de Açailândia, caminha ao lado das montanhas de resíduos inflamáveis - Fernando Martinho/Repórter Brasil
Thais Lazzeri
Açailândia (MA) | Repórter Brasil

Não há dor mais insuportável que aquela que fere um filho. Enquanto ouvia os gritos de Alan, internado por 13 dias e precisando de sedação para aguentar a dor das queimaduras nas pernas, Marlene dos Santos não sentia fome, sono ou cansaço.

“Só queria estar no lugar dele”, diz ela, referindo-se à tragédia que a família enfrentou e que deixou cicatrizes no corpo do filho, à época com 9 anos. “Era a munha.”

Em Açailândia, polo siderúrgico no Maranhão, “munha” é o apelido que os moradores deram para uma escória inflamável, resultado da produção de ferro gusa, depositada a céu aberto, em um local sem cercas ou muros atrás da casa de moradores. São montanhas negras de “munha” a perder de vista, algumas com mais de dois metros de altura.

A responsável por essas montanhas é empresa Gusa Nordeste S.A., braço do Grupo Ferroeste. A liga de ferro e carbono, feita a partir de minério de ferro, é essencial para a produção de aço.

Sob o sol, a “munha” alcança temperaturas capazes de provocar queimaduras de terceiro grau. Sob chuva e vento, esse pó fino inflamável é levado para regiões distantes. Ao decantar na terra, fica camuflado, imperceptível a olho nu.

Alan sofreu queimaduras em uma área de plantio de eucalipto da Gusa, a quilômetros de distância das montanhas de “munha”. Ele ia a cavalo com um vizinho pela estrada quando o animal esperneou. Alan caiu e viu a lama comer-lhe os pés –de um deles viam-se os ossos. A Secretaria Municipal de Saúde e a Gusa visitaram o local dias depois. Os focos de incêndio permaneciam.

Alan não foi a primeira vítima da escória incandescente. A primeira condenação da empresa é de 1999. À época, outra criança, de sete anos, afundou na “munha” e não sobreviveu. Na sentença, de 2002, o juiz José Edilson Ribeiro afirma não haver dúvidas de que a empresa “assumiu o risco, mesmo que eventual, de provocar um acidente.”

Quase vinte anos depois, o cenário piorou: tanto o número de vítimas conhecidas quanto o volume de “munha” aumentaram. A Repórter Brasil encontrou quatro famílias com casos de queimaduras severas provocadas pela escória, mas há outros em Açailândia, cidade contígua à Estrada de Ferro Carajás. 

A principal empresa que fornece minério de ferro para a Gusa é a Vale, responsável pelo rompimento da pela barragem em Brumadinho (MG), em janeiro deste ano, que deixou 231 mortos e 41 desaparecidos.

Procuradas, a Gusa e a Secretaria Estadual do Meio Ambiente não responderam aos questionamentos da Repórter Brasil. Em nota, a Vale também não comentou as violações de direitos humanos em sua cadeia produtiva. Informou apenas que “a Gusa Nordeste não pertence à Vale, bem como não há qualquer participação na empresa.”

 

Pela BR-222, que corta Açailândia, chegam caminhões lotados de escória incandescente e de outros resíduos, usados na fabricação do Cimento Açaí, pela empresa Cimento Verde do Brasil, subsidiária da Gusa Nordeste. O descarte é feito em um pátio –sem cercas, muros ou vigília.

“Vários indícios sugerem que [a empresa] não atende a legislação e as normas técnicas de destinação de resíduos perigosos”, diz o engenheiro ambiental e auditor Alberto de Freitas. As evidências apontam que a escória da Gusa Nordeste é um resíduo perigoso, segundo as normas brasileiras, por apresentar grau de toxicidade e alta inflamabilidade.

Para seguir em funcionamento mesmo diante das denúncias e da condenação judicial, a Gusa contou com a conivência do governo do Maranhão, como mostra relatório de vistoria elaborado por servidores do estado ao qual a Repórter Brasil teve acesso.

O documento, de dezembro de 2017, afirma que “toda a extensão das vias internas apresentava um abundante pó fino facilmente carregado por ventos e passagem de veículos” e que “o risco de queimaduras era muito alto, face à deposição de escória incandescente no local.”

A equipe responsável pela vistoria era composta por funcionários da Secretaria do Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Sema), da Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH, em inglês) e de um morador da comunidade mais afetada, Piquiá de Baixo. Houve registros em vídeos e fotos. É possível perceber o assombro de um deles, vestido com uma camiseta da Sema, ao presenciar um punhado de gravetos secos enfiados na “munha” pegar fogo sem ninguém acender um só fósforo. “Imagina no corpo de uma criança?”, ele questiona.

Há também uma brecha legal que favoreceu a Gusa. A lei complementar federal nº 140/2011 estabelece que se uma secretaria não responder ao pedido de licenciamento ambiental –como os feitos pela Gusa–, a licença é automaticamente prorrogada. Desde 2012, a Gusa se beneficia dessa prorrogação. 

Sem poder andar por três meses, a vida de Alan foi no colo dos familiares. Depois, locomovia-se de joelhos. Levou seis meses até ele conseguir se apoiar nos pés e quase um ano para todas as queimaduras cicatrizarem.

Como o Sistema Único de Saúde não fornecia as pomadas cicatrizantes, a família contraiu dívida de R$ 3.000. Ainda assim, os pés viviam “atrocidados”.

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