Chuvas encerram ciclo de estiagem e dão origem a 'seca verde' no sertão

Paisagem árida dá lugar a uma nova vegetação, mas não garante a safra em áreas não irrigadas

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Em Canudos (BA), durante o mês de março, choveu o suficiente para recuperar o pasto, mas não para permitir o plantio Raul Spinassé/Folhapress

Canudos e Monte Santo (BA)

Em caminhos por onde um dia passaram Antônio Conselheiro e seus beatos, José Alves da Silva, 64, surge em meio a uma estrada de terra na zona rural de Canudos, a 410 km de Salvador.

Usando chapéu e gibão de couro, ele vem montado em um cavalo também encourado. Ao seu lado, plantações de bananas emolduram a paisagem na qual predomina o verde. Acima, nuvens escuras escondem o forte sol do sertão

Depois de sete anos de estiagem, o semiárido nordestino registrou entre novembro do ano passado e abril de 2019 um volume de chuvas que chegou ao patamar da média histórica da região.

O semiárido tem dois regimes de chuvas. Na área mais ao sul, que inclui predominantemente a Bahia, elas acontecem entre novembro e fevereiro. No trecho mais ao norte, onde fica o Ceará e oeste de Pernambuco, a água cai entre fevereiro e maio.

Em meio a sua quadra chuvosa, o Ceará já teve 566 milímetros de chuvas, segundo dados da Funceme (Fundação Cearense de Meteorologia). O volume é considerado dentro da média histórica, que é de 510 milímetros, mas ainda está longe do último pico, em 2009, quando choveu quase 1.000 milímetros. 

Apesar do crescimento do volume comparado ao período entre 2013 e 2018, as chuvas caíram de forma irregular tanto espacialmente quanto no tempo, em todo o semiárido nordestino.

 

Exemplo disso foram cidades da Bahia como Jacobina e Lençóis, que chegaram a decretar emergência depois de temporais no início deste mês. Por outro lado, em áreas como o Cariri cearense, a água que caiu foi ainda abaixo da média. "Temos cidades em emergência por causa da chuva ao lado de cidades na mesma situação por causa da seca", diz Aldírio Almeida, meteorologista do Inema, órgão ambiental da Bahia.

Esta irregularidade dá origem a um fenômeno conhecido como "seca verde" no qual paisagem árida dá lugar a uma nova vegetação, mas não garante a safra em áreas não irrigadas, principalmente nas culturas tradicionais como feijão, milho e mandioca.

"Temos várias regiões em que a chuva não foi suficiente para cultivar e outras onde choveu demais. Isso prejudica a agricultura", afirma o pesquisador Pedro Gama, coordenador da Embrapa Semiárido.

Por outro lado, diz ele, o efeito é menor para quem se dedica a atividades pastoris, sobretudo a criação de caprinos e ovinos: "A recuperação dos pastos garante alimento para os animais".

Em Canudos, que fica numa das regiões mais inóspitas e secas da Bahia, as chuvas vieram em março. No povoado de Riacho do Cipó, onde os moradores mantêm uma comunidade agropastoril de fundo de pasto, com criação de gado solto, a recuperação da vegetação animou os criadores.

Quem resolveu plantar, contudo, já enfrenta revezes, caso de Marisa Pereira, 38, e Luiz Vicente de Souza, 50, que semearam feijão, coentro e maracujá na esperança de novas chuvas que não vieram.
"Com oito dias de sol quente, as plantas já estavam murchas. Com 15 dias, a maior parte já tinha morrido", afirma Marisa.

Marisa Pereira, 38, caminha em meio a vegetação, que está mais verde que o normal na região de Canudos
Marisa Pereira, 38, caminha em meio a vegetação, que está mais verde que o normal na região de Canudos - Raul Spinassé/Folhapress

O mesmo aconteceu em Monte Santo (a 350 km de Salvador), onde as chuvas concentraram-se no início de abril. Antônio dos Reis, 74, que plantou milho, feijão de corda e melancia numa área de sequeiro no povoado de Lage, lamenta a perda da lavoura.

"Pelo menos, a melancia resistiu. É pequena, mas dá para gente fazer um lanche. As que não ficaram boas, a gente dá para os porcos", diz Reis.

Se não garantiram a safra nas áreas mais secas, as chuvas fizeram os principais reservatórios de água do Nordeste voltarem a encher, reduzindo as limitações na captação de água para agricultura.

No rio São Francisco, o chamado reservatório equivalente (soma da capacidade de todos os lagos da bacia) chegou a 57%, o maior nível desde o segundo semestre de 2012. Maiores do Nordeste, a barragem de Itaparica chegou a 31% e a de Sobradinho, a 48%.

Em Canudos não foi diferente. Erguido nos anos 1960 sobre as ruínas do antigo arraial onde lutaram e morreram Antonio Conselheiro e 25 mil sertanejos, o açude de Cocorobó saiu de 17% em novembro para 55% em abril e está a apenas cinco metros de voltar a sangrar.

Apesar das Chuvas mudarem a paisagem do sertão, ainda são insuficientes para produção
Apesar das Chuvas mudarem a paisagem do sertão, ainda são insuficientes para produção - Raul Spinassé/Folhapress

A água encharcou o perímetro irrigado de 12 km, onde os sertanejos plantam banana, coco, quiabo e coentro que diariamente saem em caminhões para atender o mercado de Salvador.

As limitações para captação foram cessadas –cenário completamente diferente ao pico da seca na região, em 2017, quando a água para irrigação ficava disponível apenas três horas por semana.

"Ficou tudo inundado, um presente de Deus para nós", diz José Alves da Silva, que planta banana em uma área equivalente a dois campos de futebol nas margens do açude Cocorobó.

O aumento do volume de água do açude também fez mergulhar o antigo arraial de Canudos, cujas ruínas da igreja e cemitério haviam reaparecido em 2017 depois de quase 18 anos totalmente cobertas.

Também fez do açude ponto de encontro de adolescentes. Com a fartura de água, saltavam do alto da torre de captação da barragem, mergulhavam e aproveitavam o sol que se punha nas águas doces do sertão.

 
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