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Grupo fecha estrada e cobra por 'segurança' no RJ

Com taxa obrigatória, moradores são coagidos a contratarem vigilância privada

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Sérgio Ramalho
Rio de Janeiro | UOL

O engenheiro Sérgio Pires, 72, estranhou ao encontrar na caixa de correspondência de sua casa uma proposta de adesão a um serviço de segurança privada. Dias antes, duas propriedades vizinhas na estrada Capitão Pedro Afonso, na Vargem Grande, bairro da zona oeste do Rio, foram invadidas por ladrões.

A sensação de insegurança gerada pelos dois roubos serviu de incentivo para que parte dos moradores da localidade aceitassem pagar pela "proteção". No início, a contribuição era de apenas R$ 30. Não demorou e o responsável pela "vigilância" sugeriu a instalação de cancelas na entrada da via pública e passou a exigir taxas de até R$ 280.

No começo, a implantação dos obstáculos ao direito de ir e vir desagradou a uns poucos moradores, em especial ao engenheiro. Pires não confiava na tal proposta de segurança: "Tentei alertar que esse tipo de vigilância acabaria nos tornando reféns, mas poucos moradores me deram ouvidos na época", lembra.

Taxa de segurança se tornou obrigatória

Com o passar do tempo, a contribuição voluntária virou taxa obrigatória. "Hoje, os valores exigidos variam de acordo com os imóveis, podendo chegar a R$ 280", ressalta o engenheiro, que passou a conviver com ameaças e até agressões praticadas pelos "donos da estrada".

O engenheiro Sérgio Pires foi agredido por se recusar a pagar por taxa de segurança
O engenheiro Sérgio Pires foi agredido por se recusar a pagar por taxa de segurança - Bruno Prado/UOL

Segundo Pires, a situação se agravou após o assassinato do responsável pela instalação das cancelas.

"O Cléber abriu caminho para a milícia. Depois que ele foi morto, um morador passou a fazer pressão, exigindo o pagamento de taxa pelos proprietários de imóveis. Ele alega que instalou câmeras e ampliou a guarita na entrada da rua. Fez isso sem a anuência dos moradores e, pior, por meio da falsificação de documentos - o que já foi denunciado ao Ministério Público e à Polícia.".

O engenheiro se refere ao vizinho Marcos André Costa Lima, que se autoproclamou presidente da Assocap (Associação de Moradores da Estrada Capitão Pedro Afonso).

Oficialmente, a entidade não existe, como comprovam os documentos entregues ao MP por um grupo de moradores indignados com a cobrança da "taxa de segurança" e da instalação de câmeras que, segundo eles, são voltadas à identificação e, sobretudo, constrangimento de quem não aceita pagar os valores exigidos.

"É assim que nasce uma milícia"

Sociólogo, professor da UFRRJ e autor do livro "Dos Barões ao Extermínio: A História da Violência na Baixada Fluminense", José Cláudio Souza Alves diz que as milícias nascem do medo e crescem alimentadas pela omissão do Estado e com o financiamento de parte da população.

"É assim que nasce uma milícia. Esses grupos paramilitares vendem a ideia de proteção, mas quem paga voluntariamente num primeiro momento acaba preso a uma engrenagem sustentada pela participação de corruptos agentes da lei. A milícia é o Estado, representado por policiais, militares, agentes penitenciários, enfim, por agentes públicos que corrompem a lei em benefício próprio. A milícia não é um poder paralelo."

Ex-diretor da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) e coautor do livro "Elite da Tropa 2", o delegado Cláudio Ferraz foi responsável pelas prisões de 600 milicianos nos quatro anos em que esteve à frente da delegacia.

"Sempre que a sociedade tem seus mecanismos encarregados do cumprimento das leis e regulamentos enfraquecidos, surgem aproveitadores buscando obter lucros no vácuo desta fragilidade", diz Ferraz.

Polícia e Ministério Público investigam caso

Como não paga a "taxa", o engenheiro e sua família são constantemente impedidos de passar por funcionários que fecham a cancela.

Numa gravação anexada ao procedimento em tramitação no MP é possível ver o engenheiro sendo agredido por Marcos André, que argumenta ter ampliado a cabine onde funcionam as cancelas com autorização da Prefeitura do Rio.

O MP constatou, entretanto, que a licença foi concedida com base na apresentação de um documento com 67 assinaturas a maior parte de pessoas que não vivem na localidade. A descoberta gerou indignação entre os moradores, que reuniram 491 assinaturas em um documento que pede a retirada da cabine e das cancelas.

A mobilização iniciada pelo engenheiro Sérgio Pires também levou a Polícia Civil a instaurar um procedimento para investigar a cobrança de "taxa de segurança" e as ameaças feitas aos moradores que se recusam a pagar.

A publicitária Maria Ana pensa em deixar sua casa em Vargem Grande: "é muito triste"
A publicitária Maria Ana pensa em deixar sua casa em Vargem Grande: "é muito triste" - Bruno Prado/UOL

Este é o caso da publicitária Maria Ana Neves, que ao se recusar a pagar os valores exigidos ouviu o seguinte questionamento: "A senhora mora sozinha, não tem medo de ter a casa invadida, roubada?".

Os moradores ainda descobriram que o marcador de energia instalado na cabine está em nome do sargento PM Glauco Chaves de Paiva, que vive em Campo Grande (zona oeste do Rio) e recebeu uma homenagem, em 2007, do então deputado estadual Natalino Guimarães, preso no ano seguinte e condenado por envolvimento na milícia "Liga da Justiça”.

A constatação levou a PM a instaurar procedimento na Corregedoria para apurar a relação do sargento com o autoproclamado presidente da Assocap. Em depoimento à corregedoria, o sargento disse ter cedido o nome para pedir a instalação do marcador de energia para colaborar com o amigo, Marcos André Lima. E afirmou não receber nada em troca.

Imóveis à venda: "a situação é muito triste"

O clima de insegurança entre os moradores da Estrada Capitão Pedro Afonso só fez aumentar após a exigência de pagamento de "taxa de proteção".

Quem paga os valores tem um adesivo com a logomarca da Assocap afixado à frente dos imóveis. Quem não paga não recebe o adesivo. Resultado: é grande o número de imóveis à venda na estrada. A reportagem circulou pela via e contou 14 placas com oferta de imóveis e seis com o símbolo da associação. O engenheiro Sérgio Pires, que desde 2016 briga pela retirada das cancelas, é um dos moradores que colocou o imóvel à venda.

"As propriedades aqui são grandes, meu terreno tem pouco mais de 2.000 metros quadrados. Vivemos praticamente em sítios, próximos da natureza", pondera Pires.

A publicitária Maria Ana também já pensou e deixar a região: "a situação é muito triste", conclui.

Enquanto moradores da estrada Capitão Pedro Afonso recorrem ao Ministério Público e à polícia para terem seus direitos à segurança atendidos, grupos oferecem "segurança noturna" em ruas e condomínios de Vargem Grande e do Recreio dos Bandeirantes, bairro vizinho.

O UOL ouviu relatos de moradores da região sobre o crescente número de ofertas de "vigilância privada" feitas por meio de fichas de adesão deixadas nas caixas de correspondência (como o modelo acima). Em geral, as propostas são feitas em folhas de papel ofício, com erros de português e nenhuma identificação dos responsáveis.

Proposta apresentada por grupo suspeito de ser milícia em Vargem Grande
Proposta apresentada por grupo suspeito de ser milícia em Vargem Grande - Reprodução/UOL

A reportagem ligou para os números de telefones citados em uma dessas propostas. O homem que atendeu disse que trabalha com policiais que vivem na região e que os valores dependem do tamanho do imóvel e da localização. Ao ser informado que estava falando com um repórter, o homem desligou.

O UOL também entrou em contato por telefone com a cabine usada pela Assocap. Um funcionário que atendeu disse não ter autorização para comentar as reclamações dos moradores.

Marcos André Lima, apontado como o responsável pela cobrança de taxas, não foi localizado para comentar as investigações. Em depoimento ao MP, ele negou ameaçar os moradores que não pagam e disse que há gente na rua favorável ao que classificou como sistema de segurança.

O Ministério Público e a Polícia Civil informaram que os procedimentos investigatórios estão tramitando e os citados estão sendo ouvidos.
 

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