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Mães imigrantes se apegam a religião e costumes e adotam feijão no prato

Conflitos, pobreza e trabalho motivam estrangeiras a escolher o Brasil para criar seus filhos

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São Paulo

O olhar atento de Samira se divide entre seu interlocutor e Wallid Gustavo. O menino de dois anos não para. Corre em todas as direções, cutuca adultos, detém-se com curiosidade sobre a tampa de uma caneta e volta a correr após destampá-la. Quando é interrompido pela mãe, que o ergue com um abraço, solta uma gargalhada gostosa.

Samira Nancassa e o filho fazem parte de uma estatística crescente no Brasil, a de mães imigrantes. Dados do Ministério da Justiça tabulados pela Folha apontam que os países de onde provêm a maior parte destas mulheres podem ser tão diversos como as vizinhas Argentina e Bolívia ou as distantes China e Coreia do Sul.

Samira, por exemplo, veio da Guiné-Bissau para estudar administração. Ghazal Barambo fugiu da guerra civil que assola a Síria desde 2011. Eliezka Soto veio para escapar da crise na Venezuela. A chinesa Yuhuang Li, para trabalhar na sucursal de sua empresa. Rosa dos Santos, de Angola, para auxiliar a irmã em tratamento de saúde.

O país líder em migração de mães para o Brasil entre 2000 e 2017 é a Bolívia. Em geral, procuram melhores oportunidades de trabalho, como Aracely Mérida e Mary Angelica. Foi o caso de Ruth Callisaya em 1995, quando aportou para uma visita à irmã, mas acabou ficando por três anos após aparecer oportunidade de emprego. Quando voltou ao Brasil, em 2006, com dois filhos, veio "já pensando neles". Uma terceira nasceu em solo brasileiro.

A criação de filhos em terra estrangeira implica em uma série de peculiaridades. A depender da origem, a inicial vai ser a diferença de idioma. A criança terá que aprender uma nova língua e, muitas vezes, a original pode se perder no processo. Comida, religião, valores e costumes diferentes vão ser confrontados diariamente. A própria identidade em formação da criança é posta em questão.

"Teve um tempo em que eu vi que eles estavam se sentindo constrangidos", diz a boliviana Aracely, 36, mãe de três filhos nascidos no Brasil. Ela notou que o mais velho, hoje com 11 anos, tinha vergonha de falar que os pais eram bolivianos. "Conversei com ele e expliquei. [Com o tempo], ele falou que tinha orgulho [da origem]. Hoje ele se sente tão brasileiro quanto boliviano."

Jean, o menino, só muda de ideia quando o tema é futebol. Em junho, quando as seleções de Brasil e Bolívia brigarão por duas vagas no grupo A da Copa América de futebol masculino, sua torcida será pela amarelinha. "Mãe, me desculpe, mas é o meu país", diz Aracely, como que imitando o filho. "Também, não temos muitos bons jogadores", resigna-se a mãe.

Em comum, essas mulheres se apegam a comunidades compatriotas para manter as origens vivas. A chinesa Yuhuang Li, por exemplo, pôs os filhos em uma escola onde metade das aulas são dadas em mandarim. O marido, que é taiwanês, cresceu no Brasil. "Ele tem amigos que são da China e cresceram aqui também, é uma comunidade. Aqui já é o país deles", diz.

Quando o espoleta Wallid Gustavo vai com Samira aos encontros guineenses, costuma vestir os trajes típicos, com um conjunto de bata e calça combinando estampas coloridas. "Claro que eu não deixo escapar uma oportunidade", diz a mãe, referindo-se à valorização de sua cultura.

Com o tempo, diz Samira, vai "deixar ele escolher o que despertar seu interesse".

Em alguns casos, as mães recorrem à religião para acolhimento –a síria Ghazal, 35, aprendeu o português em uma mesquita em São Paulo– e reforço de comportamento. "A gente sempre fala para a Sara (4) do islã, o que pode fazer ou não", afirma Ghazal.

A frase é repetida de forma quase idêntica em outra conversa pela congolesa Nathalie Kankolongo, 38. "A gente sempre fala de Deus para falar o que pode e não pode fazer", diz ela, que é cristã evangélica.

A boliviana Ruth, 48, diz que o filho Joel, hoje com 21 anos, contava em casa como os colegas na escola em que estudava se comportavam mal. "Ele dizia que os alunos jogavam cadeira no professor, colocavam os pés para as meninas caírem. Sempre disse para ele se manter longe, não se meter em confusão."

Na alimentação, o mais curioso observado pelas mães que vêm de outros países é a presença diária do feijão no prato do brasileiro. "Não comemos tanto feijão, só isso", diz Eliezka, 28, da Venezuela, ao descrever as diferenças culinárias entre os dois países.

A congolesa Nathalie diz que em casa o feijão, também consumido no Congo, virou diário por causa do marido. "Ele tem que comer todo dia [depois que veio ao Brasil]. Se não fizer, reclama", diz.

Ghazal conta que inseriu o alimento na dieta majoritariamente árabe depois que a filha mais nova começou a comer o prato na escola. "Por causa dela comemos arroz, feijão e bife três vezes por semana."

Yuhuang afirma que em sua casa a comida normalmente é a chinesa. "Mas às quartas e sábados [os filhos] sempre comem feijoada."

Na Escola Municipal de Educação Infantil João Mendonça Falcão, no Brás, aproximadamente 18% dos alunos são imigrantes ou filhos de imigrantes. "É um privilégio ter essa diversidade na escola, mesmo com o desafio da língua", diz a professora Dione Fonseca.

Ela conta que para conciliar tantas nacionalidades distintas no ambiente de aula, procuram respeitar as origens e estimular esse respeito nas demais crianças. "Ela já tem uma ruptura quando sai do país dela. Tem criança que chega acuada", diz Dione, que tenta criar laços por gestos.

Como exemplo, conta a história de uma aluna síria que, acostumada aos bombardeios em seu país natal, passava o dia chorando na escola, achando que não fosse voltar para casa. Para despertar empatia nos colegas –os alunos de educação infantil têm entre 4 e 5 anos– a professora explicou para a turma o porquê de a menina ter esse trauma e a trouxe para perto de si na classe. "As crianças se sensibilizaram muito. Faziam carinho no rosto dela, diziam 'não chora'. O acolhimento foi incrível. Em um mês ela estava falando português."

Outro ponto sensível é na relação com as próprias mães, que muitas vezes sentem-se inferiores por serem estrangeiras, segundo a professora. "Se elas querem apresentar uma queixa, falam quase se desculpando," afirma. "Não queremos ter essa relação de autoridade. Queremos que entendam que esse é um espaço de todos, afinal é uma escola pública."

A peruana Telma Helena, 39, duas filhas brasileiras, agradece a receptividade. "Somos muito agradecidas às educadoras. Elas são parte de nossas famílias, pois cuidando de nossas crianças nos ajudam a trabalhar. Agradecemos a elas e ao Brasil, que nos recebe", diz Telma.

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