Tombada pelo patrimônio, ilha que abrigou presídio na ditadura está abandonada

Ocupada inicialmente por indígenas, local foi palco de guerra e abrigou casa de pólvora do Império

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Porto Alegre

Sem cobertor para protegê-lo do vento minuano que cortava o rio Guaíba nas noites do inverno gaúcho, o militar baiano Araken Vaz Galvão colocava dois colchões no chão para se aquecer. “Entrava neles como um facão na bainha”, relembra.

Em 1965, Vaz Galvão foi o primeiro preso político da ditadura militar na Ilha das Pedras Brancas, mais conhecida como Ilha do Presídio. “Na prática, reinaugurei o local como prisão e estive lá por quase um ano. A solidão era muito grande”, conta o capitão de 83 anos.

Ilha das Pedras Brancas, onde funcionou presídio durante a ditadura, que está abandonada
Ilha das Pedras Brancas, onde funcionou presídio durante a ditadura, que está abandonada - Leo Caobelli/Folhapress

Por mais de seis meses ele foi o único preso na ilha de Porto Alegre. Na década anterior, o lugar serviu de prisão de segurança máxima, pela dificuldade de fugas. Mais tarde, chegaram outros detentos.

Segundo levantamento do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), pelo menos 82 pessoas foram presas no local durante o regime militar. Não há registros oficiais disponíveis. Por ali passaram políticos como Raul Pont, ex-prefeito de Porto Alegre, e Carlos Araújo, com quem a ex-presidente Dilma Rousseff foi casada.

A reportagem visitou o local e se deparou com uma mistura de beleza natural e descaso com a memória do lugar. Após alguns minutos de navegação é possível avistar as imensas pedras brancas e arredondadas que dão nome ao local. É possível caminhar entre elas e explorar as ruínas da prisão, vandalizadas por visitantes.

Tombada pelo Iphae (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado) em 2014, desde 2005 a ilha foi cedida pelo estado ao município de Guaíba —no meio do rio, ela fica entre Porto Alegre e Guaíba. Desde a concessão, renovada até 2035, nenhum dos projetos sugeridos pela comunidade para o local saiu do papel.

A prefeitura de Guaíba diz que “é preciso fazer um estudo mais profundo para saber qual é a capacidade para receber visitantes” sem risco ao ambiente e ao patrimônio. A ideia do município é “implantar um espetáculo de som e luz, com embarcações ancoradas no entorno”, e realizar atividades educacionais.

Um dos projetos foi encomendado pelo MJDH. Mais modesto e focado na história, ele prevê na ilha um totem de 2,5m de altura com as inscrições “aos que aqui estiveram”. No Cais Mauá, no centro de Porto Alegre, de onde saíam as embarcações com os presos, a sugestão é instalar placas no chão à margem do rio com a inscrição do nome dos presos.

A história de um dos presos ficou conhecida como o “caso das mãos amarradas”. Nascido em Belém, o sargento Manoel Raimundo Soares, amigo do capitão Araken, foi torturado no Dops e posteriormente preso na ilha. Era comum os presos serem retirados da ilha para torturas ou interrogatórios no Dops.

Memorial na ilha no rio Guaíba não saiu do papel
Memorial na ilha no rio Guaíba não saiu do papel - Leo Caobelli/Folhapress

Após uma dessas saídas, em 1966, seu corpo foi encontrado por um pescador boiando com as mãos amarradas. As autoridades tentaram justificar que ele já havia sido solto quando morreu, o que era mentira. Os responsáveis não foram punidos.

Foi por causa dos trajetos entre a ilha e o Dops que foi possível a criação de uma biblioteca secreta no presídio, relembra o bancário aposentado Paulo de Tarso Carneiro, de 77 anos. Na delegacia, os presos da ilha eram deixados em uma pequena sala para não serem vistos pelos demais.

Na mesma sala ficavam as centenas de livros “perigosos” apreendidos pelo aparato repressor, como os de Karl Marx e Lênin. Um a um, eram levados escondidos pelos presos à ilha. Lá, eram organizados e catalogados por Carneiro, o “bibliotecário” informal, que foi preso em 1970. As obras ficavam  em um vão entre o telhado e a parede só acessível por escada.

Carneiro lembra que os preferidos dos presos eram “1984” e a “Revolução dos Bichos”, de George Orwell, que tratam de regimes opressores, e “Trópico de Câncer”, de Henry Miller, apontado como “pornográfico” e proibido nos Estados Unidos por muitos anos.

“O mais lindo ali era o pôr do sol. Em alguns dias ele cruzava com a lua cheia. Ficava refletido na água um corredor dourado, saindo, e um prateado, entrando”, descreve o ex-preso.

A Ilha das Pedras Brancas em 1965
A Ilha das Pedras Brancas em 1965 - Divulgação/Acervo Museu da Polícia Civil-RS/Iphae

Império e indígenas

A história da ocupação da ilha, porém, é pré-histórica, segundo o historiador Tau Golin, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF). Há indícios de que ali viviam, assim como nas demais ilhas de Porto Alegre, indígenas canoeiros, especialmente guaranis.

Os registros oficiais da ocupação datam principalmente a partir de 1835, quando a ilha serve de plataforma de passagem para o ataque dos farrapos a Porto Alegre durante a Revolução Farroupilha. Os farrapos eram republicanos e queriam a independência do governo imperial.

Anos mais tarde, o Império, que venceu a guerra, ergueu ali em 1851 uma casa de pólvora, que armazenava munição para os militares. Talvez a umidade do local tenha feito com que a função fosse modificada décadas depois para abrigar um laboratório de pesquisa animal, passando a ser um presídio de segurança máxima e finalmente um presídio da ditadura a partir de 1965. O local foi desativado após a redemocratização.

O historiador também defende que seja construído um memorial na ilha. “Há uma disputa simbólica sobre a memória da Ilha. É aquilo que na história chamamos de presença na ausência. Aparentemente não tem nada, mas tem a história do Brasil e do Rio Grande do Sul, desde os indígenas, o século 17 e a ditadura militar”, diz Golin.

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