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Com aula de português, Curitiba ajuda haitianos em reinserção

Projeto gratuito formou cerca de 700 em seis anos e trabalha também autoestima

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Curitiba

"Qual é a hora que você espera?”, pergunta a professora para a sala apertada com cerca de 30 alunos, todos haitianos, em que as carteiras dividem espaço com o lanche —sanduíches de presunto e chá—, carrinhos de bebê e uma criança que corre de um lado para o outro no curto espaço próximo à lousa. 

Entre as respostas, há os que querem um emprego, outros abrir um negócio ou ir para a faculdade, mas a maioria cita: “reencontrar a família”.

Sala de aula com repleta de alunos adultos; diante da lousa, há duas mulheres em pé viradas para eles, uma jovem negra e uma mulher loira de meia-idade
Chantale Jean François, auxiliar, e a professora Ciomara explicam a letra de canção de pagode para os alunos - Katna Baran/Folhapress

A ideia de fazer a pergunta veio da letra do pagode ‘Tá escrito’, do Grupo Revelação, um grito de autoestima para os novos moradores do Brasil que sofrem com a falta da família, de emprego e com o preconceito.

As frases no imperativo “erga essa cabeça, mete o pé e vai na fé; manda essa tristeza embora; basta acreditar que um novo dia vai raiar; sua hora vai chegar” ajudam no aprendizado da língua portuguesa, mas também a manter a esperança no dia que virá.

“Quando ouvi a música pensei: ‘nossa, tem tudo a ver com o que eles precisam’”, conta a professora Ciomara Viriato da Silva, que trabalha no ensino do português para estrangeiros, oferecido gratuitamente pela Prefeitura de Curitiba. 

O projeto tem seis anos e já formou cerca de 700 alunos. Atualmente, aproximadamente 90 pessoas têm aulas duas vezes por semana e se dividem em duas turmas, ambas em bairros periféricos da capital paranaense.

Na metodologia que ela mesma teve que criar com a ajuda dos alunos, Ciomara faz questão de ensinar palavras de “empoderamento”. 

“Geralmente eles ficam com medo, inseguros numa entrevista de emprego. Então há diferença em dizer numa entrevista ‘eu vim buscar uma vida melhor, tenho capacidade de aprender, sou uma pessoa com muitos talentos’”, diz.

Chantale Jean François, 24, é a auxiliar oficial da professora. A jovem sonha em cursar letras na faculdade e em fazer um mestrado na área.

Durante a aula, Ciomara a chama para explicar, em crioulo —língua falada em quase todo o Haiti—, o significado das frases da música. 

“Como a gente recebe alunos novos o tempo todo, não tem como parar tudo. Então é uma maneira de eles entenderem o que estou falando. E com ela vindo na frente explicar, ela tem que ler o que está escrito em português e explicar em crioulo, aprendendo também”, explica.

A presença militar brasileira nos anos de pacificação do Haiti pela ONU e o terremoto em 2010 fizeram com que vários imigrantes desembarcassem em Curitiba à procura de novas oportunidades. Mas o curso já atendeu congoleses e sírios. 

Dados mais recentes apontam que, em dez anos, o número de trabalhadores estrangeiros no mercado formal mais que triplicou na capital paranaense: passou de 1.059 em anos anteriores para 3.464 entre 2007 e 2016, segundo o Ministério do Trabalho. 

A pesquisa desconsidera trabalhadores informais e os que estão desempregados.

Mesmo entre os que conseguem emprego, muitas vezes a função conquistada fica abaixo de suas habilitações. 

Wadner Levasseur, há sete meses em Curitiba, trabalha numa fábrica de peças para automóveis, mas já foi professor de matemática no seu país. 

No Brasil, que cursar medicina. “Só há universidades privadas no meu país, e são caras”, justifica. “Temos advogados, médicos, professores nas turmas”, diz a professora.

Ou seja, a língua portuguesa é apenas um dos obstáculos a serem vencidos. 

“Tem bastante pessoas aqui que pensam ‘ruim’ de nós. Tem quem diz que o governo do Brasil pagou as passagens para os haitianos virem para cá”, conta Emílio Emelant, que chegou em 2016 e, após concluir o curso de português, está em período de experiência no emprego como estoquista.

Há quem diga que os imigrantes “roubam o trabalho dos brasileiros”, afirma a professora. Pesquisa recente da Ipsos em 26 países com 18 mil pessoas, porém, indica que o brasileiro é mais tolerante: são 28% aqui os que gostariam de ver as fronteiras fechadas, contra 40% na média global.

Emílio comemora: a esposa Monise e a filha Esther, 2, desembarcaram recentemente no Brasil. A menina, “impaciente”, como descreve Ciomara aproveitando para ensinar a palavra aos alunos, é uma das seis crianças que frequentam o curso com as mães, que não têm onde deixa-las. 

“Uma delas sempre dorme no meu ombro”, diz a professora, que, para ajudar todos a terem “sua hora”, cuida dos pequenos haitianos.

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