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'Senhoras trans' convivem com dificuldades da terceira idade

Idosas enfrentam problemas hormonais, solidão e falta de emprego

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Rio de Janeiro

Quando criança, Carlota tinha um gatinho, o Alain Delon, que morreu atropelado aos 12 anos.

Vendo-a tão triste, a mãe a consolou: para cada ano de vida do bichano, você multiplica por cinco. Essa seria a "idade humana" dele. Alain Delon, portanto, morreu sessentão, aproveitou bastante a vida.

Carlota adotou contagem similar para si: cada aniversário que fazia valia por três. Afinal, seu "tipo", ela diz, "não dura muito, não, minha flor".

Denise Taynáh, 69, que encara a transexualidade na terceira idade
Denise Taynáh, 69, que encara a transexualidade na terceira idade - Ricardo Borges/Folhapress
 

Ela é transexual num país onde poucas delas chegam à terceira idade. Não há uma estatística oficial, mas ONGs LGBTQ trabalham com uma expectativa de vida que varia entre 35 e 50 anos. 

A baiana Carlota, que comemorou seus 67 anos em março com um "churrasco drag" (legumes e verduras dispostos na cor do arco-íris), confessa que não faria mais sentido triplicar sua idade, ou hoje teria 201 anos. "Haja Botox."

É que ela, depois de ver tantas amigas assassinadas ou vítimas de Aids, nunca pensou em chegar até aqui. Agora está tendo que lidar com a velhice. E, à dor nas juntas e outros problemas típicos dessa fase da vida, somam-se outros que só transexuais femininas como ela entenderão, afirma.

Terapias hormonais a longo prazo, uso de silicone industrial e remédios antirretrovirais para trans soropositivas são algumas das questões citadas num grupo reunido por Daniel Barros, cofundador do Nudhes (Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Saúde LGBT+).

"Hormonioterapia é como se fosse uma reposição hormonal para o resto da vida. Exige controle periódico de coagulação, cânceres como o de mama, parâmetros hepáticos", diz Alexandre Saadeh, que coordena o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. "Mas é o que mantém o corpo dentro do perfil feminino e garante satisfação a essa população."

Os reveses são também sociais. A perda de mercado de trabalho, por exemplo: muitas delas não conseguem outro emprego após anos, até décadas, como profissionais do sexo, ofício que deixam de exercer com a idade. 

Carlota, ex-prostituta e atual "desempregada doméstica", ri ao lembrar do próprio caso: "Ninguém quer uva passa". Vive da ajuda financeira de amigos.

"E tem o envelhecimento solitário. São pessoas que não têm filhos e envelhecem sozinhas", afirma Barros. Mais: não raramente, cortaram laços com a família quando se assumiram.

Nem todas passam por isso, claro. "Vou morrer com 120", e uma senhorinha muito bem acompanhada, garante Denise Taynáh, a semanas de virar septuagenária.

Seu caso, ela conta, é um pouco diferente: era "um cinquentão" quando começou a vestir roupas de mulher. Isso já gostava de fazer desde a infância, quando folheava revistas femininas da mãe, como a Fon-Fon, e esperava ela ir à feira para andar pela casa com seus sutiãs e batons.

O pai, "machista nato", não gostava do jeito do filho e martelou seus dois polegares, com a esperança que "eu parasse de desmunhecar", conta.

Foi pelo mIRC, um chat paleozoico "que era como se fosse o 'zap' de hoje", que Denise conheceu o BCC (Brazilian Crossdresser Club). Um integrante puxou papo assim que entrou: "Você é CD?". 

Ela não fazia ideia que se tratava da sigla para "Crossdresser", pessoas que gostam de usar roupas do sexo oposto. "Perguntei: 'CD de que música? Gosto de MPB...'"

Com os anos percebeu que, mais do que "CD", era trans. Não gostava só de se vestir de mulher. Ela era uma mulher. Abandonou o nome de batismo, aprendeu a espirrar fininho, e não o "espirrão de macho", e passou a frequentar a ala gay de sua escola de samba, o Salgueiro.

Denise se sente privilegiada. Os amigos sambistas a acolheram, tem um trabalho que ama, na superintendência de políticas LGBT da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio, e os filhos quase todos a chamam de mãe: Leila, Soraya, Tiago, Pierre e Paulinho —só Joice, com quem passou anos brigada, quando ainda adotava identidade masculina, que não.

Para seu 70º aniversário, quer fazer a Festa Caipira da Denise. O tema seria: "Alegria e Gratidão, pelas pessoas me aceitarem dessa forma", com rugas que não são de preocupação, diz.

 

Mas o peso da idade não a poupa em um sentido: está há cinco anos na fila do SUS para a operação de mudança de sexo, e não tem ideia de quando sua vez chegará, se chegar. Quanto mais velha for, menos os médicos vão estar dispostos a submetê-la a uma cirurgia, que é mais delicada na terceira idade.

A cartunista Laerte, 67, se vê numa situação ímpar. "Descobri a transgeneridade e passei a existir socialmente no feminino há muito pouco tempo. Aos 60, para ser exata. Ser uma senhora trans é tanta novidade quanto ser uma mulher trans."

Especula que talvez por ser, enquanto homem, já bem famosa, não perdeu amigos ou oportunidades de trabalho —ao contrário de Denise e Carlota, que conheceram trans derrubadas por Aids, violência e preconceito. "Pelo contrário: ampliei e muito meus círculos de relações."

Carlota é fã de Laerte desde antes da identidade trans e adorou vê-la "chutando a porta do armário". Acha importante que as transexuais ganhem visibilidade, e "ter uma celebridade entre nós" é a lupa perfeita para ampliar a causa, afirma.

Só assim, um dia, quem sabe a maioria delas poderá morrer em paz, velhinhas "com dentadura no copo ao lado da cama", diz. Só não quer a "Marcha Fúnebre" tocando em seu enterro. "Vou orientar o DJ a colocar 'I Will Survive'". Em português: eu sobreviverei.

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